“Saí desesperada em busca de doação porque as pessoas batiam na minha porta sem ter nem comida para dar aos seus filhos.” É desta forma que Ivone, como é mais conhecida Jucineide Silva Germana, presidente da Associação Jardim União, resume a véspera de Páscoa na ocupação que reúne algo em torno de 3.500 famílias distribuídas em 600 lotes no extremo sul de São Paulo.
Se a realidade já era dura para as famílias que lutam pelo direito a um teto, a pandemia agravou ainda mais essa situação, e a batalha diária passou a ser por comida. “Estamos sobrevivendo de doação que buscamos junto a sindicatos e ONGs. Agora mesmo tenho uma lista de 70 pessoas que estão simplesmente sem nada”, afirma. Os bicos que sustentam a grande maioria das pessoas na ocupação escassearam, e até mesmo as doações minguaram, não por falta de solidariedade, mas por conta da própria crise econômica. E sem o auxílio emergencial, veio a mais completa penúria.
“Quando as pessoas recebiam R$ 1.200,00, ou R$ 600,00 de auxílio emergencial, ainda dava pra segurar, mas agora nem isso; vai começar a ter o novo auxílio, mas com esse valor aí você vai comprar um botijão de gás, que está R$ 90,00, R$ 95,00, não sobra mais quase nada”, relata. Situação que está forçando muitos a cozinharem com lenha. “Quando entramos nas casas das pessoas, podemos perceber que estão cozinhando com blocos de tijolo, as pessoas ficam até envergonhadas”, conta Ivone.
Enquanto isso, a pandemia se alastra e os relatos de internações e mortes são cada vez mais frequentes.
EMPREGO
“É o pior momento da minha vida”
“Está muito difícil, muito complicado.” Marlene Guillaume é haitiana, está há quatro anos e meio no Brasil e, há quatro meses vive no Jardim União. Assim como a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras na ocupação, enxerga na falta de emprego a maior dificuldade para garantir sua sobrevivência e do filho pequeno de apenas quatro anos.
“Comprava roupas no Brás para vender, mas a polícia me tomou duas vezes”, relata. Sem emprego com carteira registrada, a informalidade é a realidade da grande maioria dos moradores na ocupação, que sobrevive através de pequenos bicos ou como ambulante. Com a pandemia, mesmo esses pequenos trabalhos escasseiam e tirar o sustento como ambulante já não é mais possível. “Muitos que vendiam água nos sinais não podem mais, porque a polícia corre atrás deles”, relata Ivone.
“A pessoa consegue um bico aqui e ali, tira uns R$ 400,00 por mês, como é que consegue comprar comida e remédio, que muitas vezes tá em falta no SUS?”, questiona Mariano Pereira de Moraes, morador há sete anos do Jardim União, desde a data que guarda de cabeça: “12 de outubro de 2013.” Antes Mariano pagava aluguel no Grajaú, também extremo sul da capital.
Após o término de um contrato de trabalho na Sabesp, Mariano sustenta a esposa e uma filha, que espera seu primeiro neto, com bicos. “Agora imagina você tirar uma merreca num bico, para muitas pessoas aqui o jeito é ir atrás de amigos, ou de algum familiar com uma situação um pouco melhor pra conseguir uma ajuda.” Muitos se veem obrigados a recolher material para ferros-velhos, expondo-se ao vírus. “A gente vê o pessoal andando por aí sem máscara, mas vamos falar o quê, se nem uma pia com água para lavar as mãos tem?”
Questionado se compartilha da percepção que este ano está mais difícil que em 2020, não hesita: “Meu amigo, este momento está sendo o pior da minha vida.”
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Editorial: A necessidade de uma greve geral sanitária
MISÉRIA
Quase 20 milhões de brasileiros passaram fome em 2020
Levantamento realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) revela que 19 milhões de pessoas passaram fome no ano passado. A pesquisa, feita em dezembro, mostra que 116,8 milhões sofriam algum tipo de insegurança alimentar, correspondente a 55,2% dos domicílios brasileiros.
Esse período coincide com a redução pela metade do auxílio emergencial de R$ 600,00 (R$ 1.200,00 para mães chefes de família). Mas nem o auxílio emergencial integral deu conta de conter a fome, já que 28% dos domicílios que o receberam viveram insegurança alimentar “grave” e outros 37,6%, “leve”.
Ou seja, se mesmo com o auxílio emergencial do ano passado, havia fome em quase 30% das casas das famílias brasileiras, com certeza esse número aumentou muito com o corte brusco da medida e o agravamento da pandemia.
Levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV) aponta que, de agosto de 2020 a fevereiro último, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza saltou de 9,5 milhões para 17,7 milhões, totalizando agora 27,2 milhões. Ou seja, do ano passado para cá o número de pobres quase triplicou. É bom frisar que o conceito de “pobreza” utilizado aqui é de quem sobrevive com até R$ 246,00 por mês, ou pouco mais de R$ 8,00 por dia. Ou seja, é na verdade miserável.
Situação que não deve ser revertida com o arremedo de auxílio pago a partir de abril, entre R$ 150,00 e R$ 375,00.
PROGRAMA
Auxílio emergencial de verdade para combater a fome e garantir lockdown
DA REDAÇÃO
A única forma de impedir o genocídio em marcha, enquanto não há vacinação em massa, é através de uma quarentena de verdade, e isso só é possível garantindo um auxílio emergencial que possa prover a sobrevivência dos trabalhadores, dos informais e precarizados. O novo auxílio que começa a chegar em abril, de R$ 250,00 (R$ 150,00 para quem mora sozinho e R$ 375,00 para mulheres que chefiam famílias) proposto e sancionado por Bolsonaro não cobre metade de uma cesta básica. É justamente para que não haja lockdown e o vírus possa continuar a circular livremente.
É necessário auxílio de um salário mínimo (ou de pelo menos R$ 600,00) enquanto durar a pandemia. Ao mesmo tempo, para impedir o aprofundamento da crise social, da fome e da miséria, é preciso garantir estabilidade nos empregos sem redução de salários e direitos. Também ter engatilhado um projeto que permita absorver todo o contingente de desempregados através de um plano de obras públicas, que comece por responder a problemas emergenciais, como a construção de hospitais públicos e a garantia do acesso à água e esgoto. E que possa seguir atuando para acabar com problemas estruturais que são uma vergonha, um apartheid histórico e que jamais poderiam existir em países ricos como o Brasil, como a falta de moradias, hospitais, postos de saúde e saneamento básico.
Isso é possível ao atacar os lucros dos banqueiros, grandes empresários e multinacionais. Suspender o pagamento da dívida pública aos banqueiros e realizar uma auditoria desta. Daria para garantir o auxílio de R$ 600,00 somente taxando a fortuna dos 43 bilionários que existem no país (o que daria cerca de R$ 325 bilhões). Ao taxar os lucros das grandes empresas, por sua vez, seria possível manter o pequeno e médio negócio, com o Estado bancando a folha de pagamento das empresas com até 20 funcionários. É preciso ainda acabar com as isenções para as multinacionais e grandes empresas, proibindo a remessa de lucros para o exterior e a distribuição de dividendos bilionários, enquanto demitem em massa e rebaixam salários em meio a uma situação de calamidade pública e emergência sanitária.
Fome e recolonização
A alta nos preços dos alimentos e do gás de cozinha, que agrava a fome no país, tem a ver também diretamente com o processo de recolonização do Brasil. Não faz sentido sermos um dos maiores produtores de alimentos, petróleo e gás do mundo e existirem milhões passando fome e sem acesso sequer a gás para cozinhar. Isso acontece porque tudo o que é produzido aqui não vai para suprir as necessidades da população, mas para meia dúzia de investidores estrangeiros que lucram especulando com o preço desses produtos no mercado internacional.
É preciso estatizar o latifúndio e o agronegócio, colocá-los sob controle dos trabalhadores, reduzindo os preços dos alimentos. Da mesma forma, implementar uma reforma agrária sem indenização e apoiar a agricultura familiar e o pequeno produtor, responsável por grande parte da comida em nosso prato. Estatizar ainda, sob controle operário, as grandes redes varejistas que lucram com o aumento nos preços.
Da mesma forma, através de uma Petrobras 100% estatal e sob controle dos trabalhadores, seria possível reduzir o preço do gás de cozinha para menos da metade do valor atual.
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SOLIDARIEDADE DE CLASSE
A auto-organização dos de baixo
Com a crise, trabalhadores e o povo pobre contam com ações de solidariedade de classe para garantir a sobrevivência. “Sabemos que só podemos contar com as nossas próprias forças, isso em relação ao direito à moradia, e agora mais ainda com relação à própria sobrevivência”, afirma Irene Maestro, do movimento Luta Popular. “Estamos fortalecendo mecanismos coletivos, estreitando relações de solidariedade de classe”, explica.
O movimento realiza uma campanha nacional para arrecadar recursos para adquirir produtos de higiene e limpeza e alimentos para as ocupações que organiza pelo país. São ocupações na capital paulista e interior do estado, em Minas Gerais, Pernambuco, Manaus, Piauí e Sergipe. Além disso, localmente, há projetos em desenvolvimento para se criarem fontes alternativas de alimentação e renda, como hortas comunitárias e projetos como de corte e costura e estamparia.
“Além da solidariedade ativa de classe, nós estamos impulsionando uma campanha política pelo ‘Fora Bolsonaro, Mourão e toda sua tropa’, pois só tirando esse governo genocida vamos conseguir superar a crise social e sanitária em que estamos”, completa a dirigente.
É fundamental avançar na auto-organização da classe trabalhadora e do povo pobre, a fim de garantir a nossa sobrevivência, e também avançar na luta contra esse governo e esse sistema, colocando a perspectiva de um governo socialista dos trabalhadores, que governe através dos trabalhadores auto-organizados em conselhos populares.