Secretaria Nacional LGBT
Secretaria LGBT do PSTU do Rio de Janeiro
A campanha publicitária da Natura para o “Dia dos Pais”, com o ator transexual Thammy Miranda continua dando o que falar. E tem um pouco de tudo: da mais asquerosa e fundamentalista transfobia a exaltadas felicitações à “coragem” da empresa em colocar a propaganda no ar.
No meio deste debate, queremos reafirmar que é preciso, sim, combater a transfobia e toda a campanha de ódio e preconceito que tem sido destilada contra o Thammy e, por tabela, a todas as pessoas transgênero. Mas, também, que é preciso desmascarar a hipocrisia do chamado “pinkmoney” (“dinheiro rosa”), termo usado para ser referir às empresas capitalistas que se utilizam das pautas LGBTs para lucrar ainda mais, vendendo a ilusão de que são nossos aliados.
A transfobia “deles”, de todos os dias
Os ataques mais violentos vieram dos reacionários de sempre. Eduardo Bolsonaro, o filho do genocida que, na reunião ministerial do dia 22 de abril, afirmou que “se a esquerda ganhasse as eleições seria preso por homofobia”, usou o Twitter para vociferar: “Mulher como garoto propaganda do dia dos pais. Depois homem para o dia das mães… E quem falar o contrário já sabe né? É gado, é pessoa raivosa, discurso do ódio e FakeNews. Assim vão te calando e empurrando goela abaixo uma conduta totalmente atípica para padrões brasileiros”.
Na mesma linha, o pastor pentecostal Silas Malafaia convocou seus seguidores nas redes sociais pra uma campanha: “Boicotar a Natura! Coloca uma mulher para fazer papel de homem no dia dos pais. Uma afronta aos valores cristãos. Somos a maioria!”. Uma proposta esdrúxula. Primeiro, vale lembrar que a maioria dos pobres sequer tem grana pra comprar esses produtos. Segundo, sabemos, também, que muitas fiéis de Malafaia são mulheres pobres que revendem produtos da Natura pra batalhar pelo sustento de suas famílias.
O fato é ambos fazem seus ataques partindo de um pressuposto inaceitável. Dizer que Thammy Miranda não poderia representar os pais não passa de um insulto transfóbico.
Desrespeitar a identidade de gênero é também um ato de violência
Não reconhecer as pessoas transgênero de acordo com sua identidade de gênero é uma forma de transfobia. Homens transexuais, como Thammy, são aqueles que não se identificam com o gênero feminino que lhes foi atribuído no nascimento e foi imposto durante toda a vida. E uma vez que passam a assumir sua real identidade, devem ser tratados da forma que realmente são e desejam. São homens. Sem questionamentos. Sem “poréns”. E devem ser respeitados como tal e, logo, podem, sim, ser pais.
Negar este direito básico ajuda a fomentar muitas outras formas de marginalização e violência. Além dos assassinatos cotidianos que levam o Brasil a ser o país onde mais se matam pessoas transgênero no mundo, elas e eles são, muitas vezes, tratados como “anormais” ou “doentes” e lhes é negado, sistematicamente, o acesso à educação e ao trabalho, fazendo com que estejam localizados, em grande parte, em trabalhos informais, desempregados ou submetidos à prostituição.
Dentre outros direitos negados à população trans está o atendimento específico à saúde para o processo de transição, como a terapia hormonal e cirurgias. Os atendimentos que existem no Sistema Único de Saúde (SUS) são insuficientes e baseados, ainda, na lógica de que a transexualidade é uma “doença” ou um “distúrbio”, de maneira que são exigidos acompanhamento psiquiátrico durante dois anos antes da realização de cirurgiase as terapias hormonais são restritas a maiores de 21 anos.
Num país marcado pela ausência paterna, homens podem, sim, ser pais presentes
Discursos hipócritas como o do “03” da gangue de Bolsonaro e do pastor hipócrita escondem, ainda, a dura realidade enfrentada pela classe trabalhadora em relação ao próprio tema da paternidade. Vivemos em um país onde 50% das famílias são sustentadas por mulheres e 31% das mulheres, sobretudo negras, criam seus filhos sem a presença dos pais, se desdobrando em jornadas extenuantes de trabalho, fora e dentro do lar.
Essa campanha transfóbica da ultradireita nega a paternidade dos homens trans para promover uma visão idealizada de família, que tem como base a reprodução das relações burguesas tradicionais e não as relações de solidariedade de classe que caracterizam nossas famílias, onde não faltam “agregados” e laços criados pela própria necessidade.
Eles querem impor como correto um único modelo de família, formada por um homem heterossexual e cisgênero (ou seja, cujo sexo biológico, ao nascer, é masculino e se identifica como homem) e uma mulher igualmente hétero e “cis”. Isto é um ataque ao direito de que as LGBTs constituam suas próprias famílias, mas, também, à aceitação de que todas as formas de família baseadas nas relações de amor e solidariedade devem ser aceitas.
Natura e todo o mercado pink: tirem as mãos do nosso arco-íris
No meio do debate nas redes sociais, figuras como Felipe Neto saíram em defesa da empresa e se oferecendo para ser garoto propaganda gratuito da Natura. Nem todo mundo é dotado da ilimitada capacidade de autopromoção do “youtuber”, mas o fato é que muita gente embarcou nesta história, fazendo chover confete (com muito glitter e purpurina…) sobre a empresa.
Mas, afinal, a Natura é, de fato, nossa aliada na luta contra a LGBTfobia, ou o racismo e o machismo? Nós dizemos, categoricamente, que não. E por quê? Simplesmente porque é uma inimiga de toda classe trabalhadora que tenta esconder os crimes, roubos, agiotagem e rapinagem aos pobres atrás da bandeira do arco-íris.
As fábricas da Natura, por exemplo, contam com milhares de mulheres e LGBTs operárias, em sua maioria negros e negras, que recebem salários mais baixos justamente pela opressão que os submete aos piores empregos. Uma situação que foi relatada por Gil Mendes, ex-operário da Natura, em uma postagem no Facebook, e a quem agradecemos a permissão para reproduzi-la, em parte, neste artigo:
“Fui operário, auxiliar de produção, de 2010 a 2012. Fabricava entre 15 e 25 mil perfumes num turno de oito horas. Recebia R$ 1.100,00. Faça as contas e saiba quanto me era roubado de mais-valia. Mas isso é o de menos. Quando completei três meses de empresa, mais de 30 mulheres foram demitidas, todas readaptadas pós-afastamento de saúde por complicações desenvolvidas na linha de produção; algumas já tinham feito duas, três cirurgias, tinham pinos nos punhos e ombros, não conseguiam amamentar nem pentear o próprio cabelo, por causa das bursites e tendinites causadas por vestir a camisa da empresa para atender a um histérico ritmo de produção. Produção! Produção! Bater a meta!”
O discurso é liberal: gestão semiautônoma, responsabilidade socioambiental, bem-estar (…). Defendo o Thammy contra o Malafaia e seus hipócritas, mas não aplaudo a empresa nem o patrão que durante quase três anos roubou minha energia vital através da mais-valia. No chão de fábrica, o chicote estrala.
Roubo e pilhagem que só aumentaram com a polêmica criada em torno do anúncio (como, com certeza, seus proprietários e diretores de marketing já previam) que fez com que as ações da Natura crescessem 6,73%, empurrando até o índice da Bolsa de Valores de São Paulo (IBOVESPA) para um resultado positivo. Excelente notícia para uma empresa que alcançou em 2019 ganhos de 155,5 milhões.
O fato é que a Natura e outras com iniciativas no “pinkmoney”, como Burguer King, Bradesco, Itaú e Uber, enriquecem às custas da exploração dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, se utilizam das pautas dos movimentos para lucrarem ainda mais, se apresentando como “inclusivas” e isentas de preconceito.
Algo que é pura, e tão-somente, uma jogada de marketing, que vende uma ilusão que não corresponde à realidade do “chão da fábrica” muito menos do mundo e do sistema que garantem a estas empresas e seus donos os lucros e privilégios que eles mantêm.
Não há burguesia com “face humana”
Parafraseando Cazuza, “a burguesia fede”, mas passa seus mais caros perfumes e cremes para tentar ocultar sua podridão e feiura. Algo particularmente real em seus momentos de maior crise. E é por isso que, atualmente, não medem esforços para fazer dos trabalhadores e trabalhadoras seus “parceiros”, seja através de coisas como o anúncio da Natura, seja através da venda de ilusões que tentam convencer mulheres, negros(as), LGBTs e o conjunto da classe trabalhadora de que é possível se emancipar através do “empreendedorismo” ou “empoderamento”.
Exemplo, inclusive, das revendedoras dos produtos da Natura (e similares), que sofrem cotidianamente com endividamento e sem nenhum direito trabalhista; algo muito próximo da realidade dos entregadores e entregadoras de aplicativo de todo o Brasil, que já fizeram duas greves colocando em xeque a ideia do empreendedorismo.
Mas não há como se libertar através desta ilusão e até nisto a situação de Thammy é exemplar: é reconhecido na mídia, é de classe média alta, aliado à direita e mesmo assim sofre a transfobia. No sistema capitalista os lucros valem mais que a vida dos trabalhadores. As vidas negras, LGBTs, quilombolas e indígenas não importam.
É com tristeza que escrevemos esse artigo sabendo que há mais de 90 mil mortos pela Covid-19 e a única medida que os ricos nos dão é demissão e ataque aos direitos trabalhistas que suspendem contratos e reduzem salários. E nisto tanto Bolsonaro quanto os empresários do “pinkmoney” estão de acordo.
Por isso, a luta das LGBTs pobres e trabalhadoras deve ser combinada, contra a opressão e a exploração, e sempre com independência financeira e política, inclusive do “mercado pink” e suas variantes. Só temos uma verdadeira aliada: a classe trabalhadora.
Não é possível ter igualdade de direitos, “empoderar” todas as LGBTs trabalhadoras ou ter plena liberdade para toda forma de família, sem pôr fim às bases materiais que sustentam esse sistema opressor. E o caminho pra isso não é a “conciliação” com interesses dos “de cima”. Mas, sim, uma revolução socialista, que derrube todos eles.