Publicado originalmente no site da LIT-QI
Lisbeth Moya González, escritora e jornalista cubana
Se bem é verdade que as sanções do governo dos Estados Unidos atingiram a economia, ao se analisar Cuba, o fenômeno da burocracia e da falta de participação popular na política não pode ser ignorado. A dissidência é fortemente punida e o governo mostrou isso em 11 de julho.
A reação do governo ao 11J e a todos os tipos de dissidência, inclusive da esquerda, é rotular os cidadãos de contrarrevolucionários, pessoas politicamente confusas ou “mercenárias” pagas pelo governo dos Estados Unidos.
O fenômeno “Arquipélago” foi um exemplo disso. É uma plataforma que, a partir dos acontecimentos de 11J, procurou estabelecer um diálogo nacional, para além das ideologias, e que convocou a uma marcha pacífica para o dia 15 de novembro. Esse projeto político foi dando sinais de um giro à direita, por meio de projeções públicas e posicionamento de alguns de seus integrantes.
O que é notável em si mesmo, no caso desta análise, não é o Arquipélago, mas o tratamento que o governo deu a este tipo de dissidência. Mais uma vez, os meios de comunicação foram utilizados sem direito de resposta, para desmerecer os principais organizadores de todas as formas possíveis e para tentar provar as suas ligações com o governo dos Estados Unidos. A manifestação foi desautorizada pelo governo, com a alegação de que o socialismo é constitucionalmente irrevogável e que as intenções desse protesto eram derrubá-lo.
No entanto, uma das questões mais preocupantes é que, no fim de semana em que ocorreria a manifestação, se repetiu em massa em Cuba, de forma massiva, um dos capítulos mais sombrios de sua história: voltaram os “atos de repúdio”, eventos organizados pelo poder político, para com gritos, palavrões e todo tipo de violência verbal, atacar o espaço mais privado de quem discorda: a família, o lar. Imagine acordar com uma multidão na frente de sua casa gritando “contrarrevolucionário” e mais, com um ato político organizado na sua porta, no seu bairro, na frente de seus filhos e pais. Esse é um ato de repúdio, algo comum e constrangedor em Cuba nos anos 80, do que já se falou muitas vezes, algo de que muitos cubanos se envergonham, se repete hoje, com a estridência das redes sociais divulgando.
Nesse contexto, é notável que Cuba se abra para a liberalização de uma economia centrada no Estado. O ordenamento monetário, medida já anunciada para enfrentar a crise, que desde antes da Covid 19 era notável, surgiu em um momento de escassez e com nuances que não eram vantajosas para o povo. É, de fato, uma medida de segregação econômica que tem levado os cubanos ao desespero, pela falta de produtos básicos e pela inflação. O ordenamento eliminou o CUC, a emergente “moeda forte” que circulava em Cuba desde 1994, pleno período especial, para dar lugar à Moeda Livre Conversível (MLC), bem como qualquer moeda internacional muito cotada no mercado negro.
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Ao anunciar a medida do ordenamento econômico, o ministro da Economia, Alejandro Gil, garantiu que junto com as lojas da MLC, as demais lojas continuariam a vender todos os tipos de produtos necessários em pesos cubanos e que justamente essas lojas da MLC tinham como objetivo arrecadar moeda estrangeira para abastecer o resto dos comércios em pesos cubanos. Na prática, isso não aconteceu. As lojas às quais os cubanos têm acesso, que não possuem MLC estão desabastecidas e diminuem a cada dia. A obtenção de produtos básicos em Cuba é uma odisseia e, apesar do aumento dos salários, o dinheiro não é suficiente porque o processo inflacionário é enorme.
Não é de estranhar, então, que diante de tal situação, agravada pela Covid-19, a impossibilidade de dissidência e participação popular; e o discurso político repetitivo que os líderes cubanos usam de forma tosca na mídia para “legitimar” o processo revolucionário cubano, as pessoas foram às ruas.
Em Cuba, a palavra esquerda é tabu. Grande parte da população assume como socialismo ou esquerda esse discurso e essas práticas que o governo sustenta. Trata-se de uma cidadania insatisfeita, com pouquíssimo preparo político, visto que os planos de estudos, desde muito cedo, estão voltados para a doutrinação política na conveniência do poder e não no desenvolvimento do conhecimento e do raciocínio, em condições de liberdade.
Não foi por acaso, então, que no dia 11 de julho as pessoas foram às ruas. Não eram mercenários, não eram seres confusos. Eram pessoas exaustas respondendo a contradições objetivas.
Naquele dia boa parte da direita foi às ruas sim, mas também foram os trabalhadores e marginalizados, as pessoas que a esquerda deveria representar, as bases sociais que a esquerda deveria alcançar. Naquele dia também foram às ruas defensores do governo, jovens da chamada esquerda oficial, pessoas privilegiadas pelo sistema em sua maioria.
Em meio ao caos, a violência de ambos os lados veio à tona. Eram manifestantes desarmados contra todos os órgãos repressivos do Estado e esses outros privilegiados ou velhos defensores acríticos da revolução cubana, armados com paus e apoiados pela polícia.
O governo cubano enfrentou uma grande crise de governabilidade e seria injusto não levar em conta nesta análise, a exaustiva propaganda anticomunista norte-americana, que a partir das redes sociais penetrou fundo no imaginário cubano. Mas as causas internas da eclosão social estão aí, latentes no cotidiano das mulheres e dos homens cubanos. Essas causas permanecem sem solução e estão piorando a cada dia, devido ao que significou para os manifestantes e suas famílias o dia 11 de julho.
Até o momento, o grupo de trabalho sobre prisões por motivos políticos da plataforma da sociedade civil cubana Justicia 11J documentou 1.271 detenções em relação à explosão social de 11J. Dessas pessoas, pelo menos 659 permanecem detidas. Verificou-se que 42 foram condenados à pena privativa de liberdade em julgamentos sumários e 8 em julgamentos ordinários. Já é conhecida a petição fiscal de 269 pessoas que aguardam entre 1 e 30 anos de sanção. A figura da sedição tem sido utilizada para impor sanções a, pelo menos, 122 pessoas, segundo a referida plataforma que se responsabilizou de contabilizar e expor a situação dos envolvidos, por não existir cifras oficiais disponíveis.
O 11 de julho foi o auge da repressão à dissidência em Cuba. Historicamente, existia assédio sistemático por parte dos órgãos de segurança do Estado a quem discordava em todo o espectro político; existiam também casos de expulsões de centros de estudo ou trabalho por motivos ideológicos e muitas outras manifestações do tipo. Porém, em 11 de julho, foi realizada a repressão ao corpo dos manifestantes.
É o caso do jovem músico e poeta Abel Lescay, que após uma manifestação na cidade de Bejucal foi preso durante a noite em sua casa. Esse processo é particular, pois ele foi levado para a delegacia de polícia nu e sofreu Covid 19 durante a prisão.
Abel foi manifestar-se como qualquer outro cidadão, não atentou contra nenhum tipo de propriedade e o Ministério Público o acusa de: desacato à figura básica, desacato à figura agravada e desordem pública, pelas quais lhe pedem sete anos de prisão.
Além disso, Lescay é aluno do Instituto Superior de Arte (ISA) e pode perder seu curso se for condenado. Será julgado nos dias 5 e 6 de dezembro no Tribunal Provincial de Mayabeque.
Casos como este acontecem em Cuba atualmente, casos absurdos e inconcebíveis. Quando falo sobre essas questões com membros da esquerda em outros países, é surpreendente que a alguém seja exigido tais sentenças por sair para exercer o direito de se manifestar. “Se fosse assim, estaríamos todos na prisão para sempre”, disse-me um amigo argentino.
Escrevo estas linhas, com muito medo, mesmo sabendo o que significam em termos de repercussão para um militante de esquerda alternativa que vive e trabalha em Cuba. Escrevo estas linhas porque a principal dicotomia de uma militante de esquerda em Cuba é ter nítido quem ela está enfrentando e em que contexto. Embora nós, como socialistas, tenhamos a missão de lutar contra o imperialismo no mundo, embora essas palavras possam ser exploradas por outras causas, em Cuba não podemos mais ficar calados, porque se trata da vida de muitas e de muitos. É sobre o direito de discordar e existir com dignidade. Apelo à militância de esquerda internacional e aos leitores deste texto que não hesitem em investigar e apoiar a causa dos presos políticos em Cuba. Apelo à solidariedade internacional com Abel Lescay, porque só então seremos ouvidos. A esquerda deve ser considerada como uma só no mundo. Não podemos pensar no opressor apenas como um burguês, a burocracia também oprime. Não me canso de dizer: Socialismo sim, Repressão não.