Sutil e poderoso. Assim é Roma, filme de Alfonso Cuarón que estreou ontem (14/12) na Netflix. O já reconhecido e premiado filme também teve direito a sessões restritas e gratuitas em cinemas de São Paulo e Rio de Janeiro. A projeção em tela grande é um dos pré-requisitos para que o filme possa concorrer ao Oscar, já que é um dos cotados para a categoria de melhor filme.
Essa pode ser a primeira vez em que um filme produzido para uma plataforma de transmissão online leve uma estatueta. O que por si só já é um bom motivo para assiti-lo.
Mas Roma é mais do que isso. Dirigido e escrito pelo mexicano Alfonso Cuarón, que também é diretor de fotografia, o filme foi todo filmado em preto e branco e em película de 65mm, como era comum até a década de 1970. Além de garantir maior qualidade, a escolha técnica se relaciona diretamente com o enredo.
México, 1970
O filme conta a história de uma família de classe média que vive em Roma, um bairro da Cidade do México. A protagonista do filme, no entanto, é Cleo (interpretada por Yalitza Aparicio), empregada da casa. Cleo acompanha de perto o drama da família, seus problemas e o divórcio de Antonio e Sofia, que tenta esconder o fato de seus filhos. Totalmente submissa e passiva, Cleo está sempre ali para – literalmente – limpar a sujeira da família, metaforicamente representada pelos quartos bagunçados e a enorme quantidade de cocô de cachorro na garagem.
Cleo ainda passa por uma gravidez inesperada e o total abandono de seu parceiro Fermín, que insinua que o filho não é seu (embora tenha sido o único parceiro sexual de Cleo) e que não ia querer nada como uma simples “faxineira”.
Cleo volta a encontrá-lo em uma situação inesperada. Durante a repressão a uma manifestação estudantil, alguns membros milicianos invadem a loja de berços para assassinar um estudante. Entre os milicianos está Fermín. Embora o filme não mencione diretamente, trata-se do El Halconazo, ou o Massacre de Corpus Christi de 1971, quando pelo menos 120 estudantes foram mortos pelos Los Halcones, grupo miliciano treinado pelos Estados Unidos, representado aqui pelo caricato Professor Zovek. Completamente abalada, Cleo entra em trabalho de parto mas acaba por perder a criança, que nasce morta.
Ao final do filme, Sofia resolve levar seus filhos e Cleo para a praia. Lá, Sofia revela às crianças o abandono do pai e explica que, na verdade, a viagem foi para que Antonio pudesse pegar suas coisas na casa. Ainda na praia, as duas crianças mais novas quase se afogam, mas são salvas por Cleo que, mesmo sem saber nadar, se arriscou pelas crianças. Passado o susto, Cleo revela a todos que não gostaria de ter tido o bebê.
Simbolismo poderoso
A história contada em Roma é na verdade a história do próprio diretor e sua família. “Não sou mais o mesmo depois desse filme“, revelou Cuarón em entrevista. Entretanto, é preciso dizer que ele não volta a sua infância com um olhar romantizado e idealizador. O grande mérito de Cuarón é olhar para a própria infância com olhar de adulto, mostrando para o espectador todo o poder das histórias simples, com todas suas dores e contradições.
Um primeiro aspecto que merece destaque é a maneira como o diretor usa o próprio espaço como uma espécie de personagem. A própria apresentação da família começa com uma lenta cena mostrando a casa vazia, apenas com Cleo arrumando-a. A comparação da casa principal com a edícula em que vive Cleo também é uma maneira de retratar as diferenças sociais no México.
A diferença étnica entre os personagens é também significativa. Enquanto todos os personagens ricos e de classe média aparentam uma ascendência européia, todos os pobres tem traços nativos. A contradição é explícita na cena do ano novo na fazenda, onde os conflitos fundiários são o plano de fundo.
Aliás, embora se apresente como um drama pessoal, a história política e social do México não passa desapercebida. Além do massacre já mencionado, há referências às eleições presidenciais (sempre nos cartazes nas ruas) e à Copa de 1970 (no cartaz no quarto do filho mais velho). Através das relações pessoais e do cotidiano, Cuarón consegue no mostrar o machismo, a violência e os problemas políticos do país. Inclusive sutis diferenças, por exemplo, entre a situação de abandono de uma mulher pequeno-burguesa e a mulher trabalhadora. “Nós mulheres estamos sempre sozinhas”, diz Sofia, bêbada, à Cleo que em nenhum instante abandona seu posto de empregada.
Os simbolismos subjetivos dos personagens também são trabalhados com muito cuidado. O terremoto na maternidade e o copo quebrado no brinde de ano novo são prenúncio do aborto. A incapacidade de Sofia estacionar o espaçoso Ford Galaxy de seu ex-marido e sua incapacidade de lidar com o divórcio. A ridícula e desafinada banda militar e falsa ideia de ordem na família (e política também). A gaiola com dois passarinhos e a situação de Cleo e a outra empregada. Tudo é trabalhado com muita delicadeza.
De todos os simbolismos presentes no filme, no entanto, dois merecem destaque: a água e o avião. Esse dois elementos são uma espécie de refrão do filme e se repetem em vários momentos da história, numa espécie de metáfora sobre a memória, a instabilidade e fluidez da vida, a passagem do tempo, e o sobrevôo sobre o passado que é o fato do diretor recontar sua própria infância. Não à toa o filme começa com o reflexo de um avião sobre a água que escorre na garagem da casa.
Cinema mexicano
Não é possível falar de Roma sem mencionar o importante papel que tem cumprindo no cinema mundial três diretores mexicanos: Alfonso Cuarón, Guillermo Del Toro e Alejando Gonzalez Iñárritu. Para se ter uma ideia, eles são responsáveis por filmes como A forma da água (2017 – 13 indicações ao Oscar e 4 prêmios), O regresso (2015 – 12 indicações e 3 prêmios), Birdman (2014 – 9 indicações e 4 prêmios), Gravidade (2013 – 10 indicações e 7 prêmios), Labirinto do Fauno (2006 – 6 indicações e prêmios) entre outros.
Roma é um filme ao mesmo tempo delicado, sutil e sem romantismos. Sua possível indicação ao Oscar de 2019 é totalmente justa. É o tipo de filme que nos mostra todo o poder das histórias simples, sem ser simplista. O protagonismo das mulheres, o machismo, a situação política e histórica do país, a desigualdade social, sem precisar para isso de discurso panfletário. Está tudo ali, na humilde e singela figura de Cleo.
Impossível não lembrar de outros grandes filmes como A culpa é do Fidel! (2006) e 1900 (1976), de Bernardo Bertolucci. Rompendo com a cartilha do cinema industrial e do blockbusters, Roma se apresenta como um filme poético e humano. Qualidades que parecem nos fazer falta ultimamente.