Dia 20 de dezembro de 1996 foi publicada, no Diário Oficial da União, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB 9394/1996. Dentro dos limites impostos pela sociedade capitalista, a LDB incorporou algumas reivindicações históricas das lutas em defesa da democratização da educação, as quais hoje estão sob forte ameaça.

Em 22 de setembro de 2016, o presidente interino Michel Temer instituiu a Medida Provisória 746/2016. Medida Provisória é um instrumento adotado pelo presidente da República que tem força de lei por um período, mas depende de posterior aprovação do Congresso Nacional para transformação definitiva em Lei. Entretanto, mesmo que provisoriamente, as medidas atuam com força de lei no período que antecede a aprovação do Congresso Nacional, ainda que não se constituam como Decreto-Lei. Portanto, mesmo que provisoriamente, as alterações já estão vigorando na LDB e se tornarão definitivas caso a MP seja aprovada em Congresso Nacional, indo contra reivindicações históricas da classe trabalhadora que luta por educação pública, gratuita, universal e estatal. Privatização do ensino médio, desqualificação do trabalho do professor, empobrecimento curricular, fomento do ensino à distância, exploração do trabalho de estudantes, são algumas das consequências da MP conforme os principais pontos abaixo:

1- Currículo e Carga horária
O artigo 24 da LDB estabelece carga horária mínima de oitocentas horas anuais de ensino por ano, distribuídas em duzentos dias letivos. A MP institui o aumento da carga horária para mil e quatrocentas horas, sem estabelecer os dias letivos. O ensino médio, portanto, terá quatro mil e duzentas horas.

Parte da carga horária deverá ser ocupada com os conteúdos previstos em documento ainda não aprovado, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), composta de língua portuguesa, matemática, conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política.

Português e Matemática deverão ser ministrados nos três anos do ensino médio. Inglês será disciplina obrigatória desde o ensino fundamental. A carga horária destinada à BNCC não poderá ser superior a mil e duzentas horas. O restante das três mil horas de ensino será reservado aos itinerários formativos específicos, de livre escolha do aluno, podendo este ter ênfase nas seguintes áreas: Linguagens; Matemática; Ciências da Natureza; Ciências Humanas e Formação Técnica e Profissional.

Portanto, as disciplinas de filosofia, sociologia, artes, língua espanhola e educação física deixam de ser obrigatórias, tornando-se optativas, de acordo com o itinerário formativo escolhido por cada aluno. A disciplina de história sofre redução, tornando-se mero conhecimento do mundo social e político, especialmente do Brasil, segundo texto da MP.

A organização poderá se dar por disciplinas, módulos ou sistema de créditos. Os sistemas de ensino poderão reconhecer, para o cumprimento das exigências curriculares, conhecimentos, saberes, habilidades e competências comprovados diante de demonstração prática, experiência de trabalho supervisionada fora do ambiente escolar, atividades de formação técnica obtidas em outros estabelecimentos de ensino, cursos ofertados por centros ou programas ocupacionais, estudos realizados em instituições nacionais ou estrangeiras, assim como educação à distância ou presencial mediada por tecnologias.

Portanto, ainda que haja aumento da carga horária, boa parte dela poderá ser complementada fora do ambiente escolar, com cursos obtidos em outras instituições de ensino, o que favorecerá a indústria de cursos e de educação à distância.

O fato de ser possível obter créditos de ensino médio computando as horas de trabalho, favorecerá que os filhos das classes trabalhadoras tenham de abdicar de formação científica por não poderem frequentar a escola integral prevista na MP. Muitos serão obrigados a usar suas horas de trabalho explorado para concluir o ensino médio, sem ter efetivo acesso ao ensino.

As classes mais abastadas, por seu turno, poderão desfrutar do acesso aos conhecimentos científicos em tempo integral. Em tese, os alunos poderão optar por uma das áreas, dentre Linguagens; Matemática; Ciências da Natureza; Ciências Humanas; Formação Técnica e Profissional. Na prática, força-se um ensino meramente técnico e sem conteúdos científicos e filosóficos para os que precisam trabalhar desde cedo e não podem permanecer na escola em tempo integral.

Sairão ganhando as empresas que vendem serviços educacionais que podem ser utilizados como créditos para o ensino médio, e as empresas que exploram mão- de- obra barata, que não precisarão mais adequar o horário de trabalho do estudante trabalhador.

2 – Avaliação nacional e ingresso no ensino superior
A MP prevê que os cursos superiores façam seus processos seletivos apenas usando os conteúdos da BNCC. Isso provavelmente vai induzir o processo de seleção unificada, por meio da utilização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). O ENEM é uma avaliação de larga escala, ou externa, que, em tese, serve para avaliar a qualidade dos sistemas de ensino. Na prática, avaliações de larga escala são usadas para induzir mudanças curriculares e classificar escolas.

A avaliação externa já é prevista na LDB, bem como no Plano Nacional de Educação, Lei 13.005/2014. O ENEM foi instituído em 1998, no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Em sua primeira edição, foi estruturado a partir de vinte e uma habilidades, com três questões para cada uma, totalizando sessenta e três itens interdisciplinares. No ano de 2009, no governo Lula, as provas do ENEM passaram a se constituir em matrizes de quatro áreas: 1) Ciências humanas e suas tecnologias; 2) Ciências da Natureza e suas Tecnologias. 3) Matemática e suas Tecnologias. 4) Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. A avaliação por áreas do ENEM antecedeu, portanto, o currículo por área previsto na MP[2].

O ENEM possibilita que o ensino médio possa ser certificado mediante obtenção de escore na prova, sem frequência à escola. A MP institui que as avaliações nacionais e processos seletivos de faculdades serão pautados na BNCC, o que ampliará a possibilidade de obtenção de ensino médio sem frequência à escola. A certificação por meio do ENEM já é prevista na meta três do Plano Nacional de Educação para o decênio 2014-2024, Lei 13005/2014.

Assim, ao induzir ao uso do ENEM como único meio de ingresso na universidade, a MP abre precedente para a substituição da escola pelo exame do ensino médio e certificação de cursos e trabalhos realizados fora do âmbito escolar. A MP também estabelece que os conteúdos cursados no ensino médio poderão ser convalidados para aproveitamento de créditos no ensino superior. Tal medida beneficiará a indústria privada da educação, que poderá ofertar “combos” incluindo ensino médio e curso superior, até mesmo usando o trabalho voluntário dos próprios alunos em suas empresas e computá-los como hora de estudo .

Com uma única prova para o ingresso em todas as universidades e com os créditos de ensino podendo ser usados para aproveitamento de disciplinas no ensino superior, não haverá mais parâmetros para a crítica ao sistema do ensino médio.

O ENEM é uma prova que já vem sendo criticada por induzir a um empobrecimento curricular. Gonçalves Júnior e Barroso (2014) analisaram as questões de física das provas do Enem em 2009, 2010 e 2011. Concluíram que as questões do ENEM são longas, porém com pouca exigência de raciocínio complexo, bem como pouco conhecimento disciplinar. Silveira, Stilck e Barbosa (2014) publicaram um manifesto contra a “ideologia da interdisciplinaridade”, perspectiva que consideram um equívoco.

Segundo os autores, no ENEM de 2012 e 2013 não existe uma prova de física, apenas 15 questões distribuídas ao acaso dentre outras de Ciências da Natureza.  Fischer, Luft, Frizon, Leite, Lucena, Vianna e Weller (2012) analisaram os gêneros literários e autores de literaturas requisitados em questões das provas do ENEM de Literatura, Língua, Ciências Humanas, Artes e Humanidades, dentre os anos de 1998 a 2010. Concluíram que as questões de literatura não exploram a historicidade e a dimensão estética dos textos. André e Melchior (2016) analisaram a prova do ENEM do ano de 2015 e concluíram que dentre as 40 questões de língua portuguesa, apenas 3 avaliava conhecimento de gramática normativa. Portanto, mais do que ameaçar as disciplinas de sociologia, filosofia, artes, espanhol e educação física; que se tornam facultativas no ensino médio; mais do que promover uma escola desigual para ricos e pobres e desqualificar a profissão de professor, a MP induz á conclusão do ensino médio fora do âmbito escolar e induz ao empobrecimento até mesmo dos conteúdos de base curricular obrigatória, como o caso da língua portuguesa.

– Formação inicial de professores
A MP altera o artigo 61 da LDB, ao estabelecer que poderão atuar como professores da educação escolar básica profissionais com notório saber. Estabelece, ainda, que os currículos para formação docente terão de se pautar na Base Nacional Comum Curricular.

Provavelmente, serão os trabalhadores que perderão o acesso a professores qualificados em licenciaturas. Isso porque é mais provável que ocorra no ensino técnico a contratação de profissionais pela experiência profissional, do que nas escolas particulares, onde estudam as classes mais abastadas.

– Prazo para a adoção das medidas previstas na MP
Embora a MP garanta um prazo para que as medidas sejam adotadas, corre-se o risco de que haja uma adesão rápida das escolas e secretarias estaduais de educação. Isso porque o artigo sexto garante repasse de recursos às escolas dos estados e Distrito Federal que ofertem ensino médio em tempo integral e atendam aos dispositivos previstos na MP.

As transferências serão realizadas de acordo com o número de alunos, pois o repasse de verbas é feito de modo per capita, ou seja, para cada aluno matriculado. Tal dispositivo poderá induzir governadores e secretários de educação a imporem a adequação das escolas dos sistemas estaduais aos programas e matricularem mais alunos por turma, criando classes super lotadas para garantir mais repasse de verbas.

A LDB, ao ser aprovada, garantiu a universalização da escola ao estabelecer a obrigatoriedade do ensino. A antiga redação do artigo 4º da LDB estabelecia que o dever do Estado perante a educação seria garantido mediante ensino fundamental obrigatório e gratuito. Uma nova redação, dada pela lei 12.796 de 2013, passou a estabelecer que o dever do Estado se dará mediante “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos”, organizada em pré-escola, ensino fundamental, ensino médio.  Corre-se o risco de que a educação obrigatória não se dê nas escolas estaduais, mas em cursinhos privados, horas de trabalho e avaliações externas.

Lutar pela derrubada da MP é necessário, e o mais rápido possível, pois os estados estão sendo induzidos a aderir ao projeto de educação, com risco de lotar turmas para garantir mais recebimento de recursos, precarizando e extinguindo gradativamente a educação ofertada nas escolas estaduais, onde estudam as classes trabalhadoras.

A substituição de escola obrigatória por direito à educação ou por educação e escolarização obrigatória, ameaça a escola para todos. A existência da escola privada ameaça a qualidade da educação estatal.

Trabalhadores da educação precisam aderir à Greve Geral contra a retirada de direitos e pela derrubada imediata da MP 476 e lutar por medidas que garantam a educação pública, gratuita e universal para todos:

1)    Sistema de ensino composto apenas de escola estatal abolindo a mercantilização da educação;

2)    Escola obrigatória desde a educação infantil até o ensino médio, presencial, gratuita e estatal;

3)    Obrigatoriedade do ensino de matemática, língua portuguesa, história, geografia, artes, sociologia, filosofia, física, química, biologia, inglês, espanhol e educação física;

4)    Contratação de professores por concurso público com exigência de licenciatura;

5)    Efetivação dos professores de contrato temporário e abolição do contrato temporário na educação;

6)    Administração das escolas por conselhos populares locais;

7)    Definição de conteúdos curriculares de cada disciplina por meio de consulta a conselhos populares.

 

por Tamara Cardoso André, de Foz do Iguaçu (PR)

Referências
BRASIL. Presidência da República. Ministério da Educação. Medida Provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016. Institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e a Lei nº 11.494 de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, e dá outras providências. Disponível em: <file:///C:/Users/user/Downloads/sf-sistema-sedol2-id-documento-composto-58261.pdf> Acesso em 27/09/2016

BRASIL. Presidência da República. Lei nº9394/1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>  Acesso em 27/09/2016

BRASIL. Presidência da República. Plano Nacional de Educação 2014-2024. Lei nº 13005, de 25 de junho de 2014, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) e dá outras providências. Disponível em: < http://www.observatoriodopne.org.br/uploads/reference/file/439/documento-referencia.pdf> Acesso em 29/09/2016

ANDRÉ, Tamara Cardoso. MELCHIOR Solange Marilene. Gramática Normativa na Prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM, Brasil): análise com base na Teoria de Vigotski. Revista Conhecimento On Line (Prelo).

GONÇALVES JR. Wanderley. BARROSO, Marta F. As questões de física e o desempenho dos estudantes no ENEM. Revista Brasileira de Ensino de Física, Campinas, SP, v. 36, n. 01, p. 1402-1-1402-10, 2014. Disponível em: <www.abfísica.org.br>.  Acesso em 21/02/2016

SILVEIRA, Fernando Lang. STILCK, Jürgen. BARBOSA, Márcia. Manifesto sobre a qualidade das questões de Física na Prova de Ciências da Natureza no Exame Nacional do Ensino Médio. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, SC,  v. 31, n. 02, p. 473-479, 2014. Disponível em: <file:///C:/Users/user/Downloads/34411-114913-3-PB.pdf>. Acesso em 21/02/2016

FISCHER, Luís Augusto. Gabriela, LUFT. Marcelo FRIZON. Guto LEITE. Karina LUCENA. Carla VIANNA. Daniel. WELLER. A literatura no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).Nonada, Letras em Revista. Porto Alegre, n. 18,  p. 112-126, 2012. Disponível em: <file:///C:/Users/user/Downloads/568-1630-1-PB%20(1).pdf>. Acesso em 20/02/2016


[1] Professora universitária, pedagoga, doutora em educação, militante do PSTU.

[2] Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). http://portal.inep.gov.br/ Acesso em 27/09/2016