Redação
María Rivera é advogada de Direitos Humanos e possui uma longa trajetória de luta contra a ditadura de Pinochet. Desde que o povo chileno foi às ruas, no ano passado, Maria tem defendido vários ativistas que foram presos por lutarem por uma sociedade mais justa e igualitária. Por esse motivo, Maria tem recebido várias ameaças de morte.
O Opinião entrevistou Maria, que também é dirigente do Movimento Internacional dos Trabalhadores (MIT), seção chilena da Liga Internacional dos Trabalhadores (Quarta Internacional), sobre o resultado do plebiscito realizado no dia 25 de outubro e que aprovou a realização de uma Assembleia Constituinte. Ela também nos falou sobre a situação dos presos políticos no país e quais são os limites da Constituinte.
Por que o resultado do plebiscito é tão importante para o povo chileno?
María Rivera – O resultado do plebiscito, com mais de 78% de votos favoráveis à aprovação de uma nova Constituição, é uma enorme demonstração do descontentamento popular com o atual modelo econômico e com o regime político.
Das 346 comunas [divisões territoriais e administrativas, similares aos nossos municípios] que existem no país, o “Rechaço” à nova Constituição ganhou somente em cinco! Três dessas cinco são as comunas mais ricas, onde vivem o empresariado, os executivos de empresas, os banqueiros, representantes das transnacionais etc. Onde vive a burguesia chilena.
O resultado do plebiscito foi uma demonstração literal da divisão de classes no país e dos anseios, da maioria, por mudanças.
Por que a constituição de Pinochet foi mantida por tanto tempo, continuando em vigor durante os governos de Aylwin, Frei, Lagos, Piñera e Bachelet?
María – A atual Constituição foi elaborada em 1980, sete anos após o golpe militar. A Constituição não foi o que deu origem ao capitalismo neoliberal selvagem chileno. Ela simplesmente consolidou, em uma legislação, todos os retrocessos que vinham sendo implementados pela ditadura de Pinochet.
Quando ditadura acabou, apesar das enormes mobilizações de massas que existiram nos anos anteriores, não foi o movimento de massas que derrubou o ditador e, sim, um pacto entre o imperialismo norte-americano, os militares e os partidos políticos (inclusive o Partido Socialista). O Partido Comunista ficou de fora do pacto, mas, depois, seguiu pelo mesmo caminho.
Esse pacto de transição significou manter Pinochet como chefe do Exército e senador vitalício e também impôs que não se tocasse no modelo econômico e no funcionamento do regime político; ou seja, na Constituição de 1980. Nos últimos 30 anos, essa Constituição sofreu várias reformas, feitas pelos governos de direita e de “esquerda”, mas a sua base não mudou. Ainda é uma Constituição muito antidemocrática no que se refere ao regime político e totalmente capitalista e neoliberal. Não garante nenhum direito. Todos os direitos – saúde, educação, aposentadorias etc. – são tratados como “negócios”.
Fale da repressão do governo Piñera contra as manifestações iniciadas no final do ano passado.
María – A repressão do governo, desde a explosão social, que se iniciou no dia 18 de outubro de 2019, tem sido brutal. Já são mais de 40 mortos. Muitos comprovadamente pelas mãos de militares e “carabineros” (polícia ostensiva), outros em situações nunca esclarecidas. Há mais de 400 vítimas com traumas oculares, muitas delas chegaram a perder a visão em um olho e duas pessoas perderam a visão em ambos olhos, fruto de disparos de bala de borracha e bombas de gás lacrimogênio lançadas no rosto. Além disso, há milhares de denúncias de torturas, estupros e agressões.
Há poucas semanas, um vídeo mostrando um policial jogando um jovem de 16 anos de uma ponte próxima ao lugar onde ocorrem os protestos (agora, chamado Praça da Dignidade) correu o mundo. O jovem caiu e teve inúmeras fraturas, mas, felizmente, não morreu.
Estas ações repressivas foram punidas? E como está a situação em relação aos presos políticos?
Maria – A maioria dos militares e políticos responsáveis por essa enorme repressão continua livre, não foi punida. Os que estão, sim, sendo punidos somos nós, os lutadores sociais. Hoje, entre presos políticos e pessoas com restrições de liberdade, temos mais de 2000 pessoas. É impressionante como os promotores, orientados pelo governo, pedem penas de vários anos para pessoas que destruíram vidros de lojas; mas os policiais, que assassinaram, não são julgados e condenados. Isso não nos surpreende, já que, como marxistas, sabemos que o Estado é um aparato que as classes privilegiadas têm nas mãos e é utilizado para reprimir o povo.
Quais são as limitações da Assembleia Constituinte? Ela pode resolver todos os problemas do país?
María – A futura “Assembleia Constituinte” ou “Convenção Constitucional” (seu nome oficial), não resolverá os problemas do país. A futura Convenção Constitucional está cheia de armadilhas, frutos do “Acordo pela Paz e pela Justiça”, assinado pelos partidos políticos do regime para abrir o processo constituinte.
As regras para eleição de deputados constituintes favorecem completamente os partidos políticos atuais. É muito difícil inscrever um candidato independente e quase impossível ser eleito por fora das coalizões. Além disso, a própria Convenção Constitucional funcionará com um quórum de dois terços. Ou seja, todas as mudanças terão que ser aprovadas por mais de 66% dos deputados constituintes. Se os empresários, com seus partidos, conseguirem uma representação de 34%, eles poderão rechaçar ou barrar qualquer mudança.
Além disso, a nova Constituição não poderá alterar nenhum dos Acordos Internacionais de Livre Comércio, que mantém nossa economia totalmente refém das transnacionais e do imperialismo. Ou seja, o principal objetivo dos partidos políticos (de direita ou de “esquerda”, como o Partido Comunista ou a Frente Ampla) com essa Convenção Constitucional é ganhar tempo para enganar o povo que está lutando nas ruas.
O que o MIT vai fazer agora? Vai tentar eleger representantes para a Constituinte?
María – Nós estamos lutando para ter pelo menos uma candidatura, já que os requisitos são muito difíceis de cumprir. Como MIT, somos parte deste processo. Estivemos nas ruas desde o primeiro dia, com milhares de panfletos, jornais, nossas bandeiras e faixas. Estivemos nas Assembleias Territoriais, nas Brigadas de Primeira Linha, na linha de frente contra a repressão e na organização popular. Não somos os únicos representantes deste movimento, que tem milhões de vozes, mas somos parte real dele.
Estamos trabalhando para ter pelo menos uma candidatura, que seria o meu nome, já que o MIT acredita que sou a pessoa mais reconhecida para defender nosso programa nesse processo eleitoral. Também estamos discutindo com os ativistas a necessidade de lutar para serem candidatos com um programa revolucionário.
E se conseguir, o que um representante constituinte do MIT irá defender e propor na Convenção Constitucional?
María – Não temos ilusões na Convenção. Sabemos que as verdadeiras mudanças não virão de uma negociação com os partidos da burguesia. Isso ficou mais que evidente no último ano. Foram as enormes manifestações de massas e a organização popular que fizeram possível a existência desse Processo Constituinte. Pela história de nosso país e do mundo, sabemos que a burguesia, ainda que perca a maioria na futura Convenção Constitucional, não abrirá mão de sua riqueza e de seu modelo econômico.
Queremos ter candidatos e deputados constituintes para denunciar a falta de democracia desse processo e para acompanhar as massas trabalhadoras em suas expectativas, mostrando que o caminho não é depositar todas as esperanças na mudança da Constituição. Acreditamos que as verdadeiras mudanças virão através da organização e luta dos trabalhadores, trabalhadoras e da juventude.
Que mudanças seriam estas?
María – Defendemos um projeto de país totalmente oposto ao que existe hoje. Defendemos um Chile onde a maioria da riqueza produzida, que é enorme, esteja a serviço de solucionar os problemas de saúde, educação, aposentadorias, moradia, que afetam a enorme maioria da população. Por isso, dizemos que é preciso nacionalizar, sob controle dos trabalhadores, as principais riquezas do país – o cobre, a geração de energia, as grandes propriedades rurais, a pesca industrial. O Chile produz uma enorme quantidade de riquezas, mas tudo isso vai parar nas mãos dos acionistas das multinacionais e das famílias que vivem nas três comunas (subdistritos) mais ricas. Além disso, defendemos estatizar todos os bancos privados e unificá-los em um Banco Único e Estatal, que possa conduzir os investimentos nas áreas sociais de maior necessidade.
Defendemos que todos os trabalhadores e trabalhadoras tenham acesso à saúde e à educação públicas e totalmente gratuitas, com um modelo educacional que privilegie o ser humano e não o mercado de trabalho capitalista. Defendemos o fim do sistema atual de aposentadorias, que é totalmente privado, e sua substituição por um sistema público que garanta melhores aposentadorias. Somos a favor da legalização do aborto, do maior investimento em políticas de combate às desigualdades de gênero, raça ou nacionalidades. Em relação ao principal povo originário do Chile, o povo mapuche, defendemos a devolução das terras que lhes foram roubadas e seu direito em decidir se querem seguir ou não sendo parte do Estado chileno.
E o que fazer diante da repressão que, como você destacou, continua brutal?
María – Defendemos o fim das atuais Forças Armadas e dos carabineros e sua substituição pelo povo armado. Hoje, as Forças Armadas estão nas mãos de um punhado de milionários, que as utilizam para reprimir o povo. Nós defendemos que o povo trabalhador deve se armar e se organizar para que possam se defender da repressão estatal, da delinquência e do narcotráfico. Fazemos um chamado constante às tropas de carabineros e das Forças Armadas para que deixem de reprimir e passem para o lado do povo trabalhador.
Essas propostas, evidentemente, extrapolam os limites da Convenção Constitucional…
María – Sim, com certeza. Sabemos que esse programa leva à transformação total do Chile atual, à ruptura com a subordinação aos países imperialistas e suas empresas. Sabemos que esse caminho não vai se realizar através de um parlamento como a Convenção Constitucional. Esse programa só pode ser realizado com a organização e mobilização da classe trabalhadora, do povo mapuche, das mulheres e da juventude.
Lutamos para desenvolver a organização e luta popular até que o povo trabalhador tenha condições de governar o país através de seus organismos de classe, que ainda estão surgindo de forma muito embrionária, mas que se potencializarão com o avanço da revolução. Queremos um Chile e um mundo socialistas. Mas não o “socialismo” da Venezuela, que nada mais é do que um capitalismo com um discurso de esquerda. Queremos um socialismo onde a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras tenha poder de decidir o que fazer com toda a riqueza que produzimos.