Soraya Misleh, de São Paulo

O sionismo, projeto colonial consolidado com a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada (a Nakba, catástrofe para os palestinos), inventou já há tempos uma nova tradição: aprofundar os ataques aos palestinos na Esplanada das Mesquitas – que inclui Al Aqsa, o terceiro local sagrado para o Islã –, em Jerusalém, em meio ao mês sagrado do Ramadã. Na última sexta-feira (15/4), o saldo da violência das forças de ocupação que profanaram o local foi de pelo menos 158 feridos e outras centenas de presos políticos palestinos.

As cenas arrepiantes deveriam deixar qualquer um indignado. Bastaria se colocar por um minuto apenas no lugar das mulheres, crianças, homens muçulmanos que se encontravam na Mesquita de Al Aqsa e arredores para tanto. Qual seria o sentimento se a Basílica de São Pedro, no Vaticano – ou, no Brasil, se a Basílica de Aparecida do Norte, no interior do Estado de São Paulo –, fosse invadida e os fiéis católicos agredidos brutalmente no mesmo dia, em que se celebrava a sexta-feira santa? Qual seria o sentimento se uma sinagoga fosse invadida durante o Pessach, a Páscoa Judaica, na mesma data?

Não obstante, a mídia nas mãos das grandes corporações transnacionais tratou de esvaziar qualquer sentimento de empatia. As notícias não falavam em ataque ou violência do ocupante, mas em vítimas de um confronto em meio a crescentes tensões. Só que quem invadiu e profanou a Mesquita foram, como sempre, os sionistas. E os palestinos que vivem sob regime de apartheid e submetidos a expansão colonial israelense, como sempre, resistiam como podiam.

Limpeza étnica

Em nenhum momento, essa mídia hegemônica explicou a verdadeira razão por trás dos ataques a Al-Aqsa e ao conjunto da Esplanada das Mesquitas. Não é resultado de um conflito ou confronto pontual, e sim mais uma ação inserida no plano de limpeza étnica sionista na Palestina como um todo, que já dura mais de 74 anos e inclui expulsar todos os palestinos de Jerusalém, sua capital histórica.

Daí advém a tentativa de judaizar o conjunto da Esplanada das Mesquitas, ao que se recorrem a representações bíblicas e apelos religiosos para argumentar pela construção de um “terceiro templo” no lugar – conforme o livro sagrado, houve dois outros, o segundo deles destruído no ano 70 d.C. pelos romanos.

Ou seja, para justificar a destruição de Al Aqsa e Domo da Rocha, que datam do século VII, aprofundando ainda mais a colonização das terras palestinas, seculariza-se a Bíblia e se lhe apresenta como fato histórico inquestionável. A alegação vai ao encontro da ideologia que permeia o projeto colonial sionista desde seu início, nacionalizando o judaísmo e modelando uma identidade e vínculo étnicos dos colonizadores europeus com a terra como desculpa para a limpeza étnica e assim ocupar de vez Jerusalém, ao que desmantelar a Esplanada das Mesquitas seria imperioso. Ao mesmo tempo, a agressão ao local sagrado para os muçulmanos apresenta fachada conveniente ao sionismo de “guerra religiosa”.

O historiador israelense Ilan Pappé em seu livro “A limpeza étnica da Palestina” (Editora Sundermann), desmonta a ideologia que está na base do sionismo, um projeto político que instrumentaliza a religião para seus fins coloniais, em aliança com o imperialismo: “Eretz Israel, a Terra de Israel, o nome da Palestina na religião judaica, havia sido venerada ao longo dos séculos por gerações de judeus como um lugar de peregrinação sagrado, nunca como um Estado secular futuro. A tradição e a religião judaicas ensinavam que os judeus deveriam esperar a chegada do Messias prometido ao ‘final dos tempos’, antes de poder regressar a Eretz Israel como um povo soberano, os servos obedientes de Deus, para a fundação de uma teocracia judaica… Em outras palavras, o sionismo secularizou e nacionalizou o judaísmo. Para realizar seu projeto, os pensadores sionistas reclamavam o território bíblico, que recriavam (de fato, reinventavam) como o berço de seu movimento nacionalista.”

Em sua obra “A invenção do povo judeu”, o historiador israelense Shlomo Sand chama esse movimento de “mito-história”. Segundo ele, essa construção ideológica data dos anos 1880, durante o advento do protossionismo. A Bíblia, destaca, “serviu principalmente como marca ‘étnica’ que indicava a origem comum de mulheres e homens cujos dados e componentes culturais laicos eram completamente diferentes […]”.

Ele refuta, com base em suas pesquisas e estudos, o argumento de direito histórico e natural construído para a colonização sionista – usado, como sua continuidade, para a violência que se viu no dia 15 de abril na Esplanada das Mesquitas e em Al Aqsa. “Quando me tornei universitário e estudei a cronologia da história humana que se seguiu à invenção da escrita, o ‘retorno judeu’ – depois de mais de 18 séculos – pareceu constituir um salto delirante no tempo. Para mim, não era algo fundamentalmente diferente dos mitos do assentamento cristão puritano na América do Norte, ou do assentamento africâner na África do Sul, que imaginaram a terra conquistada como a terra de Canaã, concedida por Deus aos verdadeiros filhos de Israel”, afirma Shlomo Sand em seu livro. E vaticina: “Com base nisso, concluí que o ‘retorno’ sionista era, acima de tudo, uma invenção com o intuito de suscitar a simpatia do Ocidente […] a fim de justificar uma nova iniciativa de colonização, e que se mostrou eficiente.”

Nakba contínua

Assim como os argumentos são já velhos e desgastados – e nada têm a ver com questão religiosa, instrumentalizada para a contínua Nakba, como elucidam inclusive historiadores israelenses –, a agressão sionista à Esplanada das Mesquitas também não é nova. Vem desde que a parte leste de Jerusalém foi ocupada, em 1967 – a oeste o foi em 1948.

Apenas cinco dias após concluída a ocupação militar sionista de 1967, em 15 de junho daquele ano, conforme linha do tempo apresentada pelo portal Middle East Monitor, Shlomo Goren, chefe do rabinato militar do exército de ocupação, realizou, juntamente com 50 seguidores, rituais religiosos no pátio da Mesquita de Al Aqsa. Em 1969 esta teve parte queimada em um incêndio provocado por um turista australiano, Denis Michael Rohan – as marcas do fogo ainda podem ser vistas em suas paredes. Deste ano em diante foram inúmeras invasões a Al Aqsa e profanações, leis sionistas para abrir espaço aos colonizadores e proibir os palestinos de adentrar a Mesquita. Entre 2005 e 2016, como mostra o documentário “A corrida para a judaização de Al Aqsa”, foram 5.903 incursões de colonos em Al Aqsa. Em 2016, esse número saltou para alarmantes 14.565. E em um único dia de 2018 – 9 de setembro – foram 28.800. Esse movimento se acentua ao ritmo dos crimes contra a humanidade, que se aceleram por parte do Estado racista de Israel.

Nunca é demais lembrar que foi uma dessas invasões, em 28 de setembro de 2000, pelo carniceiro sionista Ariel Sharon – que no ano seguinte se tornaria primeiro-ministro de Israel –, que detonou a Segunda Intifada (levante popular que durou até 2005). Assim como em agosto de 1929 a provocação de colonos sionistas no Muro de Al Buraq, na mesma área, culminou em revolta popular. Mais recentemente, as agressões no local em maio de 2021, também durante o Ramadã, em meio aos planos de limpeza étnica em Sheikh Jarrah, em Jerusalém, unificaram a sociedade palestina fragmentada há mais de 74 anos em resistência. Essas experiências, que se enfrentam com a violência brutal dos colonizadores, têm sedimentado o caminho rumo à pá de cal no projeto sionista. Al Aqsa e Jerusalém têm potencial de acelerar esse processo.

Fonte: https://www.monitordooriente.com/