Há pelo menos uma semana Delhi, na Índia, tem sido palco de violentos ataques contra muçulmanos. Há dúvidas na imprensa internacional, mas estima-se que pelo menos quarenta pessoas foram assassinadas e centenas ficaram feridas. Pequenas propriedades como comércios e casas também foram alvo de ataques, além de mesquitas terem sido incendiadas.
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Os conflitos e a perseguição aos muçulmanos são insuflados pela extrema-direita indiana e suas milícias, todos ligados ao nacionalismo hindu que sempre existiu no país mas que cresceu nos últimos anos por conta da desaceleração econômica e da falência do projeto da frente de esquerda encabeçada pelo Partido do Congresso.
Para entender a situação, respondemos algumas perguntas sobre tema:
O que é a Lei de Emenda à Cidadania?
Aprovada pelo Parlamento Indiano em 11 de dezembro de 2019, a lei busca garantir cidadania e nacionalidade aos imigrantes vindos do Paquistão, Afeganistão e Bangladesh até 31 de dezembro de 2014. A lei considera apenas os budistas, cristãos, hindus, parsis, jains e sikhs. Todas essas religiões são consideradas “minorias perseguidas” nos países vizinhos.
Os muçulmanos, contudo, foram deliberadamente deixados de fora nova Lei de Cidadania. Isso afeta principalmente os rohingyas, um grupo étnico na região e que são violentamente perseguidos pelos budistas no Mianmar. Milhares deles também migram para a Índia em busca de refúgio.
O projeto foi acusado de inconstitucionalidade e foi enfrentado nas ruas por milhares de manifestantes em todo o país, com destaque para os estudantes. Isso, contudo, não foi suficiente para barrá-lo.
A lei foi proposta pelo Partido do Povo Indiano, o BJP (Bharatiya Janata), do primeiro-ministro Narendra Modi.
Quem é Narendra Modi e seu partido, o BJP?
A Índia, embora tenha um presidente, é governada por um sistema parlamentarista. Modi foi eleito em maio de 2014 com 275 das 543 cadeiras. Uma maioria absoluta que não era conquistada desde 1984. Com a folga, Modi e seu partido não precisaram fazer alianças ou concessões para constituir o governo. Ele, que foi eleito como um liberal moderado, começou a guinar à direita. Com sua reeleição em 2019, assumiu completamente a agenda Hindutva, uma forma de nacionalismo hindu que alguns classificam como “à beira do fascismo clássico”, já que prega uma homogeneização cultural e étnica da Índia.
Sob os governos Modi a Índia chegou a ter algum crescimento em seus primeiros anos mas às custas de uma agenda liberal de privatizações, austeridade e desmonte dos serviços públicos. Entre eles o sistema bancário, o ferroviário e até serviços básicos como saúde, educação, despesas sociais e acesso à água, que tiveram seus orçamentos reduzidos. Em contrapartida a desigualdade – que já era grande – saltou em seu governo a ponto de o Ministério do Trabalho suspender a divulgação dos dados sobre o desemprego.
Modi é um típico populista de direita, adepto de muitas transmissões ao vivo em suas redes sociais, no melhor estilo da nova direita mundial tal como Trump, Bolsonaro e cia.
Seu partido, o BJP, um dos maiores da Índia, foi fundado em 1980 e é o grande adversário à direita do social-liberal Partido do Congresso Nacional. O BJP nasce como um partido nacionalista hindu mas que, aos poucos, adequou-se eleitoralmente ao secularismo (separação entre instituições religiosas e o Estado) Indiano. Vale ressaltar que o secularismo nunca foi à fundo na Índia. Recentemente, com a crise econômica mundial, o BJP e seus políticos tem voltado às suas raízes nacionalistas.
Quem são as milícias que estão promovendo os ataques?
O termo “milícias” aqui deve ser entendido de forma genérica e não pode ser confundido com o que se passa no Brasil. Na Índia, o que chamamos de milícias são grupos fundamentalistas armados ou pelo menos dispostos ao enfrentamento físico, já que muitas vezes os ataques são realizados usando-se pedaços de pau e pedras. Os fundamentalistas hindus são identificados por seus lenços e bandeiras laranjas, cor da religião.
O principal grupo aqui é a Organização Nacional de Voluntários, a RSS (Rashtriya Swayamsevak Sangh). Ela foi fundada em 1925 sob os ideais da supremacia religiosa hindu e com um programa para constituir uma nação hindu. Chegou a ser posta na ilegalidade três vezes, sem falar em sua proibição durante todo o Raj Britânico (domínio colonial), que governou o subcontinente durante 1858 a 1947. Apesar de tudo, a organização sobreviveu. Nathuran Godse, um de seus membros mais famosos, foi quem assassinou Mahatma Ghandi em 1948.
Apesar de tudo, a RSS sobreviveu e acabou por gerar uma série de outras organizações afiliadas que são, genericamente denominadas de “Família RSS”, ou Sangh Parivar. Entre essas organizações afiliadas está o BJP, partido do primeiro-ministro Modi.
No distrito de Uttar Pradesh, ao norte da Índia, a violência é comandada pela Força Jovem Hindu (Hindu Yuva Vahini), fundada em 2002 e liderada por Yogi Adityanath, um sacerdote e político local. Uttar Pradesh tem cerca de 220 milhões de habitantes dos quais um quinto é muçulmano. Adityanath não poupo esforços nem sua milícia para conseguir votos para a eleição de Modi em 2016. Como recompensa, o governo o nomeou como Ministro-chefe da província, o que acabou fortalecendo a milícia. Opositores criticam Modi acusando-o de soltar as rédeas desse grupos extremistas.
Porque muçulmanos estão na mira dos supremacistas hindus?
Além de toda a ideologia sobre a formação de uma nação cultura, religiosa e etnicamente homogênea, muçulmanos tem virado bode-expiatório das crises pelas quais o país passa. A escalada de ódio é apoiada – ou pelo menos não sofre nenhuma objeção – por parte da elite indiana que tem interesse na divisão na classe trabalhadora em um momento de austeridade, ajuste fiscal e retirada de direitos. Vale lembrar quem em janeiro desse ano uma Greve Geral na Índia por melhores salários e condições de trabalho contou com a adesão de cerca de 250 milhões de trabalhadores. A postura da elite indiana não é em nada diferente dos conflitos étnicos ocorridos recentemente na África do Sul e sobre os quais já escrevemos nesse site.
Os supremacistas hindus acusam também os muçulmanos de “corromperem as bases da família tradicional hindu” e de praticarem a “Jihad do amor”. Esse último termo se refere, de maneira pejorativa, à conversão de mulheres hindus ao islamismo para que possam se casar com homens muçulmanos. Os hindus conservadores consideram a conversão religiosa um pecado gravíssimo.
Como tem sido, quando e onde começaram os ataques?
Os relatos de violência vão desde a discriminação verbal até os ataques físicos. Há cenas brutais de pessoas sendo espancadas e arrastadas pelas ruas. Fotos feitas em locais públicos após os confrontos mostram o uso generalizado de paus e pedras, transformando praças e ruas em verdadeiros campos de batalha.
As milícias hindus também obrigam homens suspeitos de professarem o islamismo a ficarem nus, já que a circuncisão é prática comum entre os muçulmanos. Mulheres muçulmanas relatam que seus véus são arrancados e, em alguns casos, chega-se à violência sexual. Algumas relataram que foram salvas por vizinhos que se arriscaram mentindo ao dizer que eram adeptas do Hindu. Há também um patrulhamento ideológico entorno dos relacionamentos. Famílias que permitem que suas filhas hindus se relacionem com muçulmanos estão sendo pressionadas pelas milícias fundamentalistas.
Casas, pequenos comércios e mesquitas foram incendiadas. Há uma perseguição especial contra os pequenos abatedouros de vaca e açougues, atividade econômica muito praticada por muçulmanos na região já que, para os hindus, a vaca é um animal sagrado.
A atual onda de violência se concentra principalmente em Delhi, capital do país, mas ocorre e várias regiões do país. Ela foi desencadeada pelas milícias hindus após a comunidade muçulmana protestar contra sua exclusão da nova Lei de Cidadania.
Embora a última semana tenha sido especialmente violenta, os ataques não vêm de hoje. Como dito acima, a RSS foi fundada em 1925 e já praticou muitos crimes. Contudo, com a crise econômica mundial; a derrota do projeto político e a desilusão com a frente de esquerda liderada pelo Partido do Congresso, e a ascensão ao poder da extrema-direita, as milícias sentiram-se confortáveis para substituir a disputa ideológica por uma dose maior de enfrentamento físico, violência e terror.
O que a atual escalada de violência tem a ver com a disputa pela Caxemira?
2019 foi um ano delicado para a região de Jammu-Caxemira. A região é a única na Índia de maioria muçulmana, mas é historicamente governada por uma elite hindu. Desde a independência da Índia e a formação do Paquistão, a região é disputada pelos dois países e também pela China. Inúmeros conflitos, incluídos aqui guerras e prática de terrorismo, sucederam-se na região. Apesar de tudo, a parte da Caxemira indiana gozava de relativa autonomia econômica e política garantidas pelo artigo 370 da Constituição Indiana. Em agosto de 2019 o governo de Narendra Modi revogou o status especial da região. Grupos religiosos não-hindus foram banidos, houve uma escalada de prisões arbitrárias na região e o desligamento parcial das telecomunicações. A internet chegou a ficar bloqueada por 150 dias na região.
Ou seja, os recentes conflitos na região estão ligados diretamente à postura nacionalista e intolerante do governo de ultra-direita de Modi, o mesmo que hoje abre caminhos para as milícias fundamentalistas.
Além dos conflitos étnicos e religiosos, a região tem importância geopolítica por concentrar as nascentes dos mais importantes rios que abastecem a produção agrícola tanto do Paquistão quanto da Índia. A região também é militarmente estratégica perante a poderosa vizinha China.
O que a oposição tem feito para barrar a escalada de violência?
Opositores tem denunciado Modi por seu silêncio e apoio implícito perante a onda de violência. Após uma semana, o primeiro-ministro se limitou a pedir paz e “bom-senso” em uma de suas contas em redes sociais. A polícia também está sendo acusada de fazer vista grossa perante os ataques.
A oposição de esquerda, contudo, desgastada pelo fracasso de seus governos entre 2004 e 2013 e afundada no descrédito dos escândalos de corrupção, goza de pouco apoio popular. E embora contrária à intolerância religiosa, não tem um projeto econômico radical para tirar a Índia da crise. Por tudo isso a oposição tem se limitado à formalidade das instituições.