A história da participação popular na saúde inicia-se no período de ascenso de lutas que derrubou a ditadura militar, em que ocorreu um processo de alargamento da democracia burguesa, que se expressa na crescente participação da sociedade nos processos de discussão e de tomada de decisão relacionados com as questões de políticas públicas. As principais forças envolvidas nesse processo compartilham um projeto “democratizante e participativo”, construído desde os anos 1980 ao redor da expansão da “cidadania e do aprofundamento da democracia”. Assim, o significado político crucial da participação é radicalmente redefinido e reduzido à gestão. A ênfase gerencialista e empreendedorista transita da área da administração privada para o âmbito da gestão estatal, com todas as implicações despolitizadoras delas decorrentes.
O Estado e setores da sociedade comprometidos com o projeto “participativo democratizante”, incluindo aí o setor da saúde conhecido como Movimento de Reforma Sanitária, substituem o confronto aberto da década anterior, período de ditadura militar, por uma aposta na possibilidade de uma atuação conjunta com o Estado através de espaços institucionalizados de participação popular.
A chamada inserção institucional dos movimentos sociais é evidência dessa inflexão. O confronto e o antagonismo que tinham marcado profundamente a relação entre o Estado e a sociedade nas décadas anteriores cederam lugar a uma aposta na possibilidade da sua ação conjunta para o aprofundamento democrático.
A participação popular constitui-se em uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), contemplada no artigo 198 da Constituição Federal de 1988 e na lei 8142\90, a qual define a organização e o funcionamento do Controle Social do SUS e suas Conferências. Na década de 1990, a maioria dos que se identificavam como militantes da saúde passou a integrar esses espaços burocráticos e institucionalizados de participação popular na saúde (controle social) acreditando na implementação do recém nascido SUS nesses espaços dentro do Estado burguês. Na década seguinte, houve uma entrada ainda maior de movimentos sociais nesses espaços (influenciados pela chegada de Lula no poder) juntamente com uma cooptação de muitos militantes da saúde para atuar na gestão de governos frente populares nos âmbitos federal, estadual e municipal.
A participação popular na saúde sofre de uma doença congênita chamada cidadania. Essa concepção, segundo Welmowicki, qualifica o indivíduo como cidadão, sem uma clivagem de classe, a partir de supostos interesses comuns a todos os homens na melhoria social, e que poderia uma vez assumidos pela sociedade, superar a desigualdade entre as classes sociais. Isto leva o cidadão a participar dos espaços institucionais, acreditando na neutralidade do Estado, e que este está ali para defender interesses da sociedade, como todos os cidadãos ali presentes.
Essa conjuntura levou o controle social do SUS a grandes derrotas no último período. Como exemplo, temos a luta histórica pela regulamentação do financiamento na aprovação da EC29 (sempre modificada e barrada aos interesses econômicos do Estado burguês vigente), a reprovação da implantação de Fundações Estatais de Direito Privado e suas derivações pelo Conselho Nacional de Saúde (órgão máximo do Controle Social) e no dia seguinte o Ministério da Saúde disse que iria implementá-las de qualquer forma dizendo ser um benefício ao SUS. Esses fatos nos mostram que estes conselhos passam a ser instancias homólogas de decisão do gestor (aprovando pacotes ministeriais que devem ser implementados), sendo impedidos de proporem formas de alteração de poder na relação entre sociedade e estado, além do mais, levam militantes e movimentos sociais a se incorporar no sistema e na política de negociação, deixando de lutar por questões fundamentais.
Esse histórico e suas lutas e derrotas atuais nos levam a algumas questões. Poderá o controle social potencializar e impulsionar a implementação de fato do SUS dentro da sociedade capitalista?
Existe possibilidade de movimentos populares em saúde não institucionalizados existirem hoje? Pela convergência de diversos militantes de saúde para estes espaços, pode tornar-se importante uma disputa ideológica/política de ataque ao Estado e luta por reivindicações junto a estes setores de vanguarda do movimento? Por qual SUS que lutam os militantes de saúde hoje?
Busca-se nesse texto disparar esta discussão e buscar caminhos para a luta revolucionária dentro do setor saúde junto à vanguarda da militância em saúde, entendendo que o que está em jogo nos conselhos é o combate a desigualdade econômica, em última instância, e não apenas a formulação de medidas sociais paliativas, mesmo estas, segundo Marx, só se realizarão mediante a “constante pressão dos operários agindo por fora” através de uma “ação política geral”, somente assim poderemos mudar de fato as condições de saúde da classe trabalhadora. Tendo a clareza de que estes espaços não são verdadeiros organismos de poder da classe trabalhadora e sendo espaços de cooptação de dirigentes do movimento sindical e popular, acredita-se que conselhos populares realmente deliberativos somente com a presença de trabalhadores, sem patrões ou gestão, ou seja, sob o controle dos trabalhadores, que teremos a possibilidade de uma saúde estatal e de qualidade, baseada na demanda da população.
Este texto busca iniciar e colaborar com a discussão sobre instâncias de participação popular no SUS, expressando o posicionamento do autor.