Em 3 de julho de 1917, na cidade de Alegrete (RS), nascia o gaúcho João Saldanha. Criado no Paraná mas carioca de coração, Saldanha era torcedor ferrenho do Botafogo. Chegou inclusive a jogar nas categorias de base do clube, mas não vingou. Formou-se então primeiro em Direito e depois em Jornalismo.
João era um apaixonado por futebol. Paixão que não abandonou mesmo quando deixou de jogar. Tornou-se comentarista. E dos mais ácidos. Intelectual e culto, Saldanha criticava com perspicácia o futebol nacional e rapidamente se tornou um de seus maiores analistas.
Tamanha era sua capacidade de analisar o esporte que foi convidado em 1957 para comandar o Botafogo. Estreou vencendo o Campeonato Carioca e permaneceu a frente do time por dois anos, quando regressou para a profissão de jornalista.
Passou por importante veículos como o Jornal do Brasil, Última Hora, O Globo, pela revista Placar, pelas Rádios Guanabara, Tupi e rádio Globo, entre outros. João falava e sua voz ecoava nos radinhos de pilha ao pé do ouvido dos torcedores da geral. Também apresentou programas esportivos nas televisão, onde participava de mesas-redondas sobre futebol, em programas pioneiros do gênero. Jornalista de alma, Saldanha foi um grande contador de casos, impressionando e conquistando a admiração dos próprios colegas de profissão.
OS 100 anos de João Saldanha, o homem sem medo
João era um homem de posições firmes e intransigentes. Muitas vezes, polêmicas. Como era suas posições sobre o penteado blackpower para jogadores de futebol. E não era para menos. João, além de amante do futebol, foi um comunista convicto. Filiou-se ainda jovem ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Em 1964, o botafoguense não se deixou intimidar com o golpe militar. Tornou-se, na verdade, um duro crítico do regime. Em 1969, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD – que veio a se tornar a atual CBF) convidou João Saldanha para ser técnico da Seleção. Na época, a entidade já era presidida pelo João Havelange (sim, esse mesmo). Como a CBD era muito próxima aos militares, especula-se que sua convocação tenha sido uma tentativa de aliviar as críticas sofridas pela Confederação.
Sobre seu comando, foram convocados para a Seleção os chamados “feras”. Os craques da época. Pelé, Tostão, Piazza, Gerson, Edu, Rogério, Jairzinho e outros passaram a compor o time dos sonhos que até hoje ainda é cantado em nossa músicas. O resultado foram seis vitórias em seis jogos, além da classificação para a Copa de 1970, no México.
A controversa demissão
No mesmo ano, em 1969, o regime militar assassinou Carlos Mariguella. O guerrilheiro era amigo de longa data (e de militância) de João, que ficou irado. Durante o sorteio dos grupos da Copa, Saldanha aproveitou sua ida ao México para distribuir para imprensa internacional um dossiê sobre centenas de milhares de presos políticos, torturas e assassinatos promovidos pela ditadura.
João voltaria a se desentender com os militares. O general Médici, à frente do país na época, insistiu para que João convocasse o atacante Dario, o Dadá Maravilha do Atlético Mineiro. Perguntado por um jornalista sobre a possibilidade da convocação, Saldanha não teve dúvidas: “Ele escala o ministério, eu convoco a seleção”. Duas semanas depois foi demitido do cargo.
A seleção passou para o comando de Zagallo. Algumas mudanças foram feitas. Do ousado 4-2-4 ofensivo de Saldanha, passou-se para o esquema 4-3-3. Dario foi convocado. Mas toda a base projetada por João foi mantida. E o resultado da Copa de 1970, não há quem não se lembre. Impecável.
Até hoje se especula sobre o real motivo da demissão de João Saldanha. Há quem diga que a recusa em convocar Dario, junto com a resposta áspera para Médici tenha sido a gota d’água. Mas o mais provável é que a Ditadura tinha medo que a seleção voltasse consagrada do México e colocasse o opositor e comunista Saldanha nos braços do povo.
O homem sem medo, de armas nas mãos
Por esses e outros episódios é que o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues apelidou João Saldanha de João Sem Medo. E não era para menos. Após uma derrota da Seleção para um Paraguai em um amistoso, João recebeu duras críticas. Uma das mais ferrenhas veio justamente do técnico do Flamengo, o então Dorival Knipel.
O “homão”, como era conhecido Dorival, tinha um porte físico grande e jeito truculento. Jeito que irritou Saldanha. Com um revólver calibre 38, João foi na sede do Flamengo tirar satisfação. Depois de alguns tiros para o alto, Dorival fugiu pulando o muro dos fundos e ninguém ficou ferido. Essa não foi a única vez que Saldanha se envolveu em troca de tiros por conta de futebol.
O futebol arte
João também era um crítico voraz do chamado “futebol moderno”. Para ele, o talento do craque, o futebol-arte, era o fundamental. “Hoje tem uma porção de gente que tá jogando pelo contrato em dólar e não para o time”, criticou o brilhante jornalista que já previa o que aconteceria com o futebol brasileiro.
Em 1990, criticou duramente Sebastião Lazaroni, técnico da Seleção Brasileira. Lazaroni era um defensor do “futebol europeu” que, nas palavras de Saldanha, cometia uma “burrice siderúrgica” à frente da Seleção.
Esse foi o último artigo de Saldanha, escrito já da cama do hospital, na Itália. Praticamente já havida perdido a voz e respirava com dificuldade, por conta de um enfisema pulmonar provocado pelo cigarro. João estava cobrindo a Copa daquele ano na Itália. Genial e valente, João Saldanha, o homem sem medo, morreu fazendo o que gostava.
Não é por acaso que sua entrada na rádio era anunciada com a frase: “Vem aí o comentarista que o Brasil inteiro consagrou!”.