Sabe, Luzia?
Foi por uma reportagem sobre sua reconstituição facial que me interessei pelas ciências humanas. Tinha onze anos e quando me perguntavam o que eu queria ser, dizia “arqueólogo”.
Quem vai poder contar quantas outras crianças também não se interessaram, a partir de Luzia, pelos mistérios de nossa origem? Imaginar que antes de índios e portugueses existia alguém aqui… Você, Luzia: uma mulher negra.
Você que, em tempos de terra plana, pós-verdade e outros obscurantismos desses tempos sombrios, foi um ponto de luz só por ter existido. Seu nome, aliás, significa justamente isso: “luminosa”. Faísca que reascendeu os debates sobre a colonização do continente americano.
Um elo perdido na nossa incansável busca pela origem da humanidade. E quem poderia dizer, que trágica ironia, acabou por ser vítima de desumanidade desse sistema. Onde vale mais a liberdade de circulação das mercadorias e a integridade da propriedade privada do que a humanidade daqueles que produzem essa riqueza.
Na verdade, Luzia, é triste, mas houve quem poderia dizer. Desde os anos 1990 diretores, secretários e jornalistas denunciavam a precariedade das instalações elétricas, as infiltrações, a falta de manutenção e o sucateamento do museu. Mesmos motivos que levaram às cinzas outros museus nossos. Mesmos motivos de sempre aliás: o descaso dos nossos governantes.
E isso não é culpa de um ou outro governo, Luzia. É culpa de todos eles. Municipal, estadual, federal… todos tem colaborado com esse projeto sinistro. Seja com o ajuste fiscal, a “PEC do teto”, congelamento dos gastos, o corte no orçamento da ciência, da cultura, educação, com o privilégio do pagamento da dívida pública a banqueiros e milionários em detrimento do povo.
O que para nós foi sorte, Luzia, para você foi azar. Foi descoberta mulher negra em um país racista onde a classe dominante é herdeira de escravocratas. Alguns, com trabalho escravo até hoje. Uma burguesia covarde que prefere entregar tudo que tem em troca de algumas migalhas.
Ah, Luzia, tantos palácios por queimar! Tantos outros que as cinzas trariam mais alegria do que tristeza…
Mas quis o destino que fosse justo o seu. Como disseram por aí, você sobreviveu à 12.000 anos de história, mas não resistiu à algumas décadas desses governos picaretas e corruptos.
Junto com você outras 20 milhões de memórias também se perdem. O maior acervo de línguas indígenas da América Latina, fotografias, múmias egípcias, dinossauros, acervo de povos originários e tantas outras. Um acervo de valor histórico e científico imensuráveis. Tanta coisa para salvar e sequer havia água. Mas houve quem disse que a situação estava sob controle, ou que o acervo seria reconstituído.
Obrigado, Luzia, e desculpe. Mas aqui destruir nossa história nunca foi acidente. Sempre foi projeto. Aqui existir é e sempre foi resistir.
Nunca tive a oportunidade de visitar o museu e agora não tenho mais. Pelo menos não o Museu que já foi um dia. Não virei arqueólogo também, é verdade. Mas a curiosidade e o interesse nunca morreram. Essa luzinha não apaga e foi você que acendeu.
O tempo urge, Luzia. Talvez não tenhamos mais 12 mil anos para buscar nossa humanidade – que nunca perdemos, mas às vezes é tão difícil encontrar.
É um misto de desgosto, sabe, Luzia? Não vou dizer adeus. Mesmo que remotas existem algumas chances que os próximos dias confirmarão ou não.
Mas não podemos deixar de acreditar que outros tempos virão. Outros palácios hão de queimar, Luzia, mas não perderemos nada. Pelo contrário. Que tudo isso que está aí vire história e vá parar no acervo do grande museu dos tempos de hoje. Quando o descaso com a ciência e educação serão apenas páginas dessa história, e nós já teremos nos reencontrado com nossa humanidade, roubada por esse sistema.
Obrigado, Luzia.