Daniel Sugasti
Novembro marca o bicentenário de nascimento de Friedrich Engels, incansável revolucionário e um dos intelectos mais perspicazes do século 19. O melhor modo de recordá-lo é conhecendo, compreendendo e resgatando o verdadeiro significado de seu legado como cofundador do socialismo científico.
Segundo nossa visão, reivindicar sua herança teórico-política não pode ser outra coisa que não a defesa do marxismo como um todo. Concordamos com Lenin: “Depois de seu amigo Karl Marx, Engels foi o mais notável cientista e mestre do proletariado contemporâneo de todo o mundo.”
Uma dupla indivisível
É inaceitável separar a obra de Marx da de Engels. A influência de um sobre o outro, de forma indistinta, atuou como uma constante fonte criadora para ambos.
O gênio de Marx é inquestionável, mas a qualidade intelectual e o atrevimento militante do “general”, como Engels foi apelidado, não foram menores. Foram complementares. Engels se declarou comunista antes de Marx. Também foi o primeiro que se interessou pelo estudo da economia política. Seu artigo intitulado “Apontamentos para uma crítica da economia política”, redigido em fins de 1843 e publicado nos Anais Franco-Alemães, contribuiu imensamente para que Marx se interessasse pelo estudo da economia capitalista.
O próprio Marx reconheceu esse fato em 1859: “Friedrich Engels, com quem mantive um constante intercâmbio escrito de ideias desde a publicação de seu genial esboço sobre a crítica das categorias econômicas, tinha chegado por um caminho diferente ao mesmo resultado que eu” (Prólogo à Contribuição à Crítica da Economia Política). Isso mostra, em parte, que a participação de Engels na investigação que desembocaria em O Capital superou amplamente a contribuição material.
A intensa colaboração entre ambos alcançou o ponto em que é muito difícil discriminar quem escreveu qual parte nas obras assinadas em conjunto. Existem textos que levam apenas a assinatura de Marx, mas foram completados por Engels, como é o caso dos dois últimos volumes de O Capital. Ou, como se soube muito depois, podemos mencionar os artigos publicados com o nome de Marx no jornal estadunidense The New York Daily Tribune durante a década de 1850, que foram escritos na íntegra por Engels – entre outros motivos, porque dominava o inglês – para que Marx pudesse ter acesso a alguma renda. Ou então o capítulo que Marx escreveu para a célebre obra de Engels, o Anti-Dühring (tão criticado por certos “marxianos”), fato que talvez ninguém tivesse notado sem a revelação espontânea que seu autor fez no prefácio à segunda edição de 1887.
Quando jovens, Marx e Engels escreveram A Sagrada Família (1844), A ideologia alemã (1846) e o Manifesto do Partido Comunista (1848). Pouco antes desses trabalhos comuns, em 1842, Engels já tinha realizado os primeiros contatos pessoais com o movimento owenista e cartista (correntes do movimento operário da Inglaterra) e, três anos depois, publicou sua icônica Situação da classe trabalhadora na Inglaterra, em base a um rigoroso estudo de estatísticas oficiais e, sobretudo, da observação direta das terríveis condições de exploração às quais estava submetido o proletariado de Manchester, a cidade-fábrica.
A intensa atividade intelectual de ambos se combinou sempre com a prática revolucionária. Organizaram a dura luta programática que transformou a utópica Liga dos Justos em Liga dos Comunistas. Quando começou a onda de revoluções democrático-burguesas de 1848, abandonaram a Bélgica para se estabelecerem em Colônia. Nessa cidade, publicaram, durante quase um ano, o jornal Nova Gazeta Renana. A contrarrevolução que sucedeu à derrota da Primavera dos Povos fez com que Marx e Engels, como milhares de outros revolucionários, sofressem uma dura perseguição que obrigou ambos a emigrarem para Londres.
Os anos em Manchester
No final de 1850, Engels teve de se instalar em Manchester para trabalhar na firma da qual seu pai era coproprietário, a Ermen & Engels. Ainda que detestasse sua rotina de trabalho no “comércio imundo”, compreendia que esse sacrifício era necessário para ganhar o dinheiro que permitisse a Marx se dedicar totalmente a escrever sua obra principal.
O positivo deste longo período – de 1850 a 1870 – é a correspondência quase diária que manteve com Marx, generosa em lições sobre numerosos problemas teóricos e políticos. Marx, que o chamava de “enciclopédia ambulante”, em muitas ocasiões pediu dados ou opiniões para O Capital.
Ainda que separados fisicamente, a estreita colaboração intelectual também oferecia momentos de profunda emoção que, à sua maneira, ajudam a ilustrar os laços de camaradagem e a humanidade entre ambos. Entre outras coisas, existe uma carta comovente que Marx escreve para Engels para informar que tinha finalizado o primeiro tomo de O Capital: “Por fim este tomo está terminado. Devo a você ter conseguido concluí-lo. Sem tua ajuda ilimitada jamais teria podido finalizar o trabalho prodigioso de três tomos. Te agradeço com todo o coração e te abraço.”
De fato, o sustento oferecido por Engels foi fundamental para a culminação dessa obra. Engels sempre o amparou de forma incondicional. A ajuda material, além de uma prova de profunda amizade, sempre foi concebida por Engels como uma contribuição concreta a uma causa comum.
Novamente ao lado de Marx
Em 1870, Engels retornou a Londres. Depois de quase duas décadas, voltou a trabalhar de forma presencial com Marx. O trabalho comum possuía uma divisão de tarefas que Engels explicou: “Como consequência da divisão do trabalho que existia entre Marx e eu, coube a mim defender nossas opiniões na imprensa jornalística, o que, em particular, significava lutar contra as ideias opostas a fim de que Marx tivesse tempo de acabar sua grande obra principal. Isso me levou a expor nossa concepção, na maioria dos casos de forma polêmica, contrapondo-a às outras concepções” (Contribuição ao problema da habitação).
Engels com certeza tinha participado, em 1864, do processo de fundação da Associação Internacional de Trabalhadores (AIT), a Primeira Internacional, mas até 1870 não desempenhou um papel principal. Uma vez em Londres, assumiu uma função protagonista no conselho geral. Participou de maneira enérgica de toda sorte de disputas programáticas e organizativas contra as correntes sindicalistas e anarquistas.
A edição de O Capital
Depois da morte de Marx, Engels teve de suportar todo o peso que implicava continuar a tarefa empreendida junto com seu companheiro. Havia muito por fazer. Engels se dispôs a ordenar o legado científico de Marx. Entre seus papéis, encontrou os manuscritos inacabados de O Capital. Deixou de lado suas próprias obras e se dedicou a completar o que conhecemos como o segundo e o terceiro livros de O Capital, publicados em 1885 e 1894 respectivamente. Engels não teve tempo de preparar-se para a impressão do quarto tomo, que ficou conhecido como Teorias da mais-valia devido ao título que Kautsky lhe deu quando o publicou em alemão entre 1905-1910.
A edição dos dois últimos tomos implicou um imenso trabalho. Engels teve de ordenar os papéis e retomar o trabalho a partir de onde Marx o deixou incompleto, em especial os materiais do terceiro tomo, que eram pouco mais que anotações soltas: teve de realizar novas pesquisas e aprofundar outras; ordenar manuscritos e entender notas e abreviações com a caligrafia quase ilegível de Marx.
Ainda assim, Engels cumpriu essa árdua tarefa com satisfação. Sem Engels, a obra magna de Marx, a mais profunda análise científica sobre o funcionamento da produção capitalista e da luta que o burguês e o operário estabelecem sobre sua base, teria ficado incompleta.
Transformar o mundo
Em meio à edição, Engels pode publicar importantes obras suas, como A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884); Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1886); os manuscritos que compuseram depois Dialética da natureza; além de escrever prefácios às edições de textos anteriores. Isso sem contar que, depois de 1883, Engels também ficou como o principal dirigente do processo de construção do que seria a Segunda Internacional, no contexto de um notável fortalecimento do movimento operário europeu e do marxismo entre suas fileiras.
Nem Marx nem Engels foram comentaristas da realidade. Todo seu esforço teórico esteve a serviço de dotar o proletariado de um programa científico que pudesse ser assumido pelos melhores elementos da classe operária. Para eles, não se tratava só de interpretar o mundo, mas de transformá-lo.