O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou no último dia 30 o chamado novo “arcabouço fiscal”, o conjunto de regras criado para substituir o teto de gastos. A medida vinha sendo insistentemente cobrada pelo mercado financeiro, por boa parte da imprensa e colocada como condição pelo presidente do Banco Central, o bolsonarista Campos Neto, para a redução dos juros.
A reação do mercado não poderia ter sido melhor. Tão logo seus principais pontos foram divulgados, a Bolsa subiu, o dólar baixou e os elogios vieram da Febraban (Federação Brasileira dos Bancos), que a classificou como “passo importante e meritório”, até do ex-presidente Michel Temer, que não sem razão chamou a medida de uma “adaptação” do teto aprovado em seu governo. Tal consenso se espraia até aos setores de esquerda que, quando criticam o conjunto de regras, o fazem partindo de que seriam um avanço em relação ao teto. Mas seria mesmo isso?
Teto de gastos 2.0
A Emenda Constitucional 95, o teto de gastos de Temer aprovado em 2017, limitava os gastos públicos à correção inflacionária do período anterior. Os principais pontos do arcabouço fiscal apresentado pelo governo contam com os seguintes pontos:
“Novo” arcabouço fiscal
– Crescimento das despesas só pode subir até 70% do AUMENTO das receitas.
– Independentemente da arrecadação, o crescimento das despesas deve variar entre 0,6% a 2,5% do ano anterior. Ou seja, se o país viver um boom econômico e uma explosão na arrecadação, os gastos só aumentam 2,5%.
– Caso a meta de superávit primário não seja cumprida, no ano seguinte há uma “penalização” e o teto para os gastos fica em 50% do AUMENTO das receitas. Caso se repita, no ano seguinte essa variação desce para 30%.
Longe de ser uma ruptura com a Emenda Constitucional 95, o “novo” arcabouço fiscal do governo Lula-Alckmin é mais uma adaptação, como melhor definiu Temer. Até porque era praticamente consenso que o teto, tal como foi aprovado, era inviável a médio prazo, tanto que já foi implodido há muito. O novo arcabouço reafirma como prioridade absoluta o pagamento da dívida aos banqueiros, através da busca do superávit primário (receitas menos despesas, descontando os juros da dívida) em detrimento dos investimentos públicos. Como o próprio Haddad ressaltou, o objetivo é zerar essa conta em 2024, ter superávit (lucro descontando juros) equivalente a 0,5% do PIB em 2024, e de 1% em 2026.
É, na prática, uma flexibilização do teto, mas ainda assim um teto que, uma vez implementado, jogaria os gastos públicos a um patamar inferior aos dos governos do PT, e até mesmo dos anos FHC. Para se ter uma ideia, os gastos públicos, no melhor dos mundos, seriam limitados a menos da metade da média do que se aumentou nos dois primeiros governos Lula (5,2%), e que, na época, já era insuficiente. É uma pá de cal em qualquer expectativa de aumento real em serviços públicos, programas sociais como o Bolsa Família, aumento de salário mínimo e aposentadorias, tudo para garantir superávit primário e o pagamento da dívida aos banqueiros.
O governo alardeia que voltam os pisos mínimos constitucionais para saúde (15% do Orçamento) e educação (18%). No entanto, além de engessar isso e inviabilizar um investimento significativo, e que realmente represente uma mudança efetiva, o que vai acontecer, na prática, é que esses gastos vão pressionar os demais setores para que se fique dentro do novo teto, seguindo a mesmíssima lógica do teto de Temer.
Já a promessa de Haddad, de elevar a arrecadação numa proporção e velocidade maior que o crescimento do PIB, sem uma reforma tributária que desonere os trabalhadores, que é quem sustenta essa estrutura regressiva de impostos, não vai se concretizar, ou vai, mais uma vez, onerar ainda mais a classe e os setores médios.
Não tem nenhum avanço
Alguns argumentam: ao menos, no pior das hipóteses de uma crise econômica e uma recessão, com a consequente queda de receita, a nova regra garantia um aumento mínimo de gasto real, mesmo que só de 0,6%, não é? O que não é dito é que esse “aumento” não acompanha nem mesmo o crescimento médio da população, de 0,7% segundo o IBGE. Ou seja, per capta, podemos ter uma redução nos gastos públicos nos próximos anos.
Nos discursos que apontam o caráter “menos pior” do tal arcabouço em relação ao teto está um suposto elemento “anticíclico” das medidas. Esse é o nome que os keynesiano dão para o aumento dos gastos como panaceia para se combater uma crise econômica. Porém, é ridículo chamar de “anticíclico” um aumento de, num exercício meramente hipotético de um período de bonança, 2,5%, partindo de um patamar já rebaixado e com o atual nível de degradação econômico e social.
Aliás, este é um dos erros mesmo dos setores críticos, que comparam o nível de gasto possibilitado pelo novo arcabouço com o de anos anteriores. Não é só que vai diminuir, vai diminuir após anos de crise econômica, depois de uma pandemia que reduziu a pó 10% da renda média dos brasileiros (chegando a mais de 20% no caso dos mais pobres) numa esteira de desemprego, informalidade e precarização avassaladora, com o aumento da pobreza, da miséria e o ressurgimento do fantasma da fome. E ainda com os sinais de uma nova crise se armando num horizonte não tão distante.
O novo arcabouço fiscal, assim, mantém e perpetua uma política econômica que visa a transferência de riquezas produzida pelos trabalhadores e o conjunto da população a banqueiros e bilionários. É uma sequência da política espoliação e pilhagem, eliminando até mesmo a possibilidade de mecanismos de contenção e amortecimento do impacto social, como foram outrora o Bolsa Família ou o Auxílio Emergencial arrancado durante a pandemia.
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