Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU
O músico cubano faleceu na terça, dia 22, aos 79 anos, deixando uma obra imortal. Por décadas, Pablito, como era conhecido, fez de sua voz, sonoridades e composições expressões dos amores, dores, coisas da vida, sonhos e lutas dos povos, principalmente da América Latina.
Voz e poesias enraizadas nas culturas e tradições do povo de sua amada ilha e banhadas pela revolução. E que, por isso mesmo, há muito tempo, também se levantaram contra o regime castrista e o estalinismo.
Não por ter se tornado um “contrarrevolucionário”, como muitos o acusaram. Mas exatamente porque ele, diferentemente de seus acusadores, não traiu seu povo nem os ideais que o levaram à luta pela revolução, inclusive através de suas músicas.
Apesar de ser praticamente impossível separar sua carreira de sua trajetória política, dividimos nossa homenagem a ele em duas partes. Neste artigo, iremos falar de mais de suas músicas. No próximo, de suas divergências com o castrismo.
O trovador da revolução
Seu nome estará para sempre vinculado à “Nueva Trova”, a versão cubana de um movimento chamado “Nueva Cancíon Latinoamericana”, que, nos anos 1960, varreu vários países do continente, acompanhando o que rolava no Teatro, nas Artes Plásticas e no Cinema.
Na música, o movimento se caracterizou pelo profundo mergulho nas raízes da cultura popular e, ao mesmo tempo, por uma fina e criativa sintonia com as inovações estéticas da época. Reflexo “distorcido” daquilo que se passava no contexto histórico e tocava fundo nos corações e mentes da esquerda: se apoiar nas histórias e tradições dos “de baixo” para, ligados nos eventos e contradições do presente, construir as pontes para um futuro mais libertário, igualitário e justo.
Neste contexto, Pablito, de fato, foi um “trovador”, até mesmo no sentido medieval do termo: um poeta-músico.
Um trovador que, num primeiro momento (ao lado de músicos como Silvio Rodríguez e Noel Nicola), cantou a Revolução de 1959, como ela aproximou o povo cubano da possibilidade de construção de um novo mundo e, também, fez o desejo por mudanças arder pelo continente.
Um cantautor, como é geralmente chamado, numa referência a músicos que escrevem, compõem e cantam seu próprio material. E, por isso mesmo, alguém que inspirou gerações, com composições que, inclusive, foram gravadas ou ganharam versões por aqui, nas vozes de Chico, Milton, Simone, Fagner, Olivia Byington, Diana Pequeno, Gal e Caetano, dentre outros.
Músicas como “Yolanda” (“…te amo, te amo, eternamente te amo…”, que ele cantou pela primeira vez, em 1970, para sua companheira na época, Yolanda Benet, enquanto ela amamentava a filha Lynn); “Años” (“El tiempo pasa / Nos vamos poniendo viejos…”); “Yo no te pido” (“…que me bajes una estrella azul / solo te pido / que mi espacio llenes con tu luz”), “Amo esta isla” (“soy del Caribe / jamás podría pisar tierra firme / porque me inhibe”) ou “Comienzo y final de una verde mañana” (que ganhou uma versão do Chico: “de que calada maneira / você chega assim sorrindo / como se fosse a primavera”), dentre umas tantas outras.
Jovem boêmio, rebelde e revolucionário
Pablito nasceu em 1943, em Bayamo, filho de um soldado e de uma costureira que ele praticamente “arrastou” para Havana, em 1950, para que pudesse estudar no Conservatório Musical da capital cubana, onde, aos 15 anos, já era figura frequente no cenário boêmio.
E foi em suas noitadas que se apaixonou por um estilo conhecido como “filin” (uma corruptela da palavra inglesa “feeling”, que significa “sentimento”), caracterizado pela interpretação “sentimental” das canções, bastante identificadas com as músicas românticas norte-americanas, particularmente o jazz e o “blues”. Também, segundo ele próprio, a música brasileira foi parte importante em sua formação.
No decorrer daqueles anos, além de aproximar o estilo da realidade de seu povo, Milanés o revolucionou, da mesma forma que os cubanos estava refazendo a História de seu país. Por isso, não foi um acaso que seu primeiro disco, “Mis 22 años” (1965), tenha sido visto como a transição entre o “filin” e que viria ser a “Nueva Trova Cubana”.
O “salto”, contudo, só aconteceria com a eclosão do processo revolucionário. No entanto, no caminho de Milanés havia um fortíssimo obstáculo: a burocracia castro-estalinista, que fez com que o músico amargasse uma das experiências mais dramáticas e marcantes de sua vida.
Memórias dos cárceres castro-estalinistas
Ainda em 1965, quando estava fazendo o serviço militar e atuando como um militante em defesa da Revolução, Pablito foi designado para um dos campos de trabalhos forçados das famigeradas Unidades Militares de Ajuda à Produção (UMAP), destinadas a “reeducar” LGBTIs, religiosos, intelectuais, artistas, jovens e todo e qualquer um que tivesse uma conduta considerada não-revolucionária.
Locado na Província de Camagüey e tornando-se ele próprio, como já disse, um prisioneiro em um “campo de concentração”, Milanés protagonizou uma ousada fuga para Havana, onde passou a denunciar as barbaridades que havia vivido e presenciado.
Algo que acabou resultando em sua prisão na Fortaleza de La Cabaña, cujas condições de repressão eram ainda piores que as dos campos da UMAP, ao ponto de motivarem uma campanha internacional que resultou em seu fechamento, no início de 1967, dois meses depois da chegada de Milanés, que acabou sendo libertado com os demais prisioneiros.
O cantar da latinidade e da negritude
Logo após conquistar a liberdade, Milanés esteve no “Primeiro Encontro Internacional da Canção de Protesto”, realizado na “Casa de las Américas”, entre julho e agosto de 1967, e que contou com a participação de vários nomes do cancioneiro político latino-americano, reunindo músicos do Uruguai, Paraguai, Chile, Argentina, Haiti, México e Peru.
Os brasileiros, sufocados pela ditadura, não puderam participar do evento, que também contou com músicos da Europa e do Vietnã, maior símbolo da luta antiimperialista, naquele momento.
Influenciado pelo que viu e ouviu, Milanés mergulhou na produção de canções com conteúdo político e, no ano seguinte, se apresentou com Silvio Rodríguez e Noel Nicola, no mesmo local, num show é considerado por muitos como a “certidão de nascimento” da “Nueva Trova”.
Dois anos depois, ele passou a integrar o Grupo de Experimentação Sonora do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas (GES-ICAIC), compondo trilhas para o cinema, uma experiência que, contudo, como umas tantas outras, foi varrida pela burocracia castrista, em 1977, exatamente pelo seu caráter experimental e, portanto, por fora das restritas orientações do governo.
O cantautor nunca deixou de acreditar que qualquer luta ou expressão artístico-cultural teria que romper as fronteiras impostas pelo colonialismo e o imperialismo e, ao mesmo tempo, respeitar e celebrar a diversidade de nossos povos.
Por isso, em 1972, quando um processo revolucionário sacudia o Chile, Milanés, Rodríguez e Nicola viajaram para o país e fizeram apresentações com os representantes da “Nueva Canción” de lá, como Victor Jara, Violeta Parra e sua família.
Em 1974, seu primeiro disco, “Versos Sencillos” (versos simples ou singelos), trazia apenas versões musicadas de poemas de José Martí (1853-1895), como a linda “Yo soy um hombre sincero”, escrita pelo herói da independência cubana, em 1895, pouco antes de ser assassinado pelos espanhóis.
Em 1975, lançou “Pablo Milanés canta Nicolás Guillén”, musicando poemas do também escritor, jornalista e ativista político, cujas obras e militância refletem um movimento conhecido como “negrismo”, influenciado pela Renascença do Harlem (cujo principal nome foi o poeta gay norte-americano Langston Hughes, de quem Guillén se tornou amigo, em 1930) e movimentos semelhantes no Caribe.
No ano seguinte, o primeiro disco apenas com composições próprias trazia duas que se tornaram verdadeiros hinos das lutas na América Latina. “Yo pisaré las calles nuevamente” (“Eu pisarei nas ruas novamente”), um grito cantado contra a genocida ditadura Pinochet, e “Canción por la unidad latinoamericana”, um clamor pela libertação e reunificação do continente que ganhou, em 1978 (no fantástico “Clube da Esquina 2”), uma versão com Milton e Chico, bastante apropriada para denunciar, também, as ditaduras que infestavam o continente.
Aliás, nestes “anos de chumbo”, Pablo Milanés se transformou num dos polos aglutinadores de nomes Mercedes Sosa, os espanhóis Víctor Manuel e Luís Eduardo Aute (também, como Chico, presentes no disco “Querido Pablo”, de 1985) e uma infinidade de artistas latinos.
A cultura como instrumento de organização e libertação
Nesta mesma época, formou o seu próprio grupo, dando início a uma fase caracterizada pela riqueza dos recursos musicais e, também, pela mescla “antropofágica” (ou seja, que se alimenta, como um “canibal”, daquilo que é tido como o “outro” para assimilar sua força vital) de gêneros, tradições e estilos, sempre mantendo crítica e política, em discos como “Identidad” (1990); “Canto de la abuela” (1991); “Orígenes” (1994); “Despertar” (1997), dentre outros.
Também investiu bastante na Cultura, como uma forma de criar alternativas para a organização e expressão populares, criando uma Fundação que desenvolvia projetos em torno da música, das artes plásticas, dança e teatro, criou uma revista, uma estação de rádio e uma editora, dentre outras iniciativas. Mais uma vez, graças ao regime castrista, a Fundação teve vida curta.
Os anos 2000, sintomaticamente, foram marcados por projetos para além dos limites de Cuba. Em 2001, foi lançado um novo “Pablo Querido”, com cantores do Brasil, Argentina, Peru e México, dentre outros, além de gerações mais jovens de músicos cubanos. Ideia que também esteve por trás de “Como un campo de maíz” (2005).
Em 2013, foi lançado “Renacimiento”, gravado depois de uma delicada transfusão de rim (doado por sua companheira, a historiadora espanhola Nancy Pérez), na qual resgatou tradições negras, como o “guaguancó” (uma variante da rumba) e o “changuí”, estilo originado nos campos de trabalho escravo, da fusão, dos instrumentos de corda espanhóis com a percussão rítmica dos povos “bantu”, da África.
Ainda lançou novos álbuns em 2014 (“Cancíon de otoño”), 2017 (“Flores del futuro”) e, em 2019, juntamente com seu amigo José Maria Vitier, “Flor oculta de la vieja Trova”, com homenagens a cerca de 10 poetas latinos.
A saída de Havana e um retorno para uma despedida conquistada pelo povo
As insatisfações de Pablito com o regime se acentuaram fortemente no início dos anos 2000 e, gradualmente, a partir de 2004, ele passou a viver entre Havana e Madrid, para onde acabou mudando-se definitivamente.
Sua última apresentação, em 21 de junho passado, foi, significativamente, em Havana, onde Pablito não colocava os pés havia três anos. E não foi nada menos que uma despedida, emocionante e apoteótica, na qual Milanés soltou a voz, levando o público ao delírio.
Em uma bela reportagem publicada no “El País”, em 22 de junho, Mauricio Vicent foi bastante preciso ao relacionar as 25 canções apresentadas tanto à trajetória do Trovador quanto ao significado social e político deste show derradeiro, cujo único “porém” foi o fato do regime castrista ter, de novo, mostrado suas garras contra o cantautor.
Doente há anos e já com o sistema imunológico bastante comprometido pelo câncer, Milanés há muito havia expressado o desejo de se despedir de sua terra. As negociações, contudo, não foram fáceis e a proposta do governo foi que ele se apresentasse no Teatro Nacional de Havana. Belíssimo, mas com apenas dois mil lugares.
Com um detalhe extremamente significativo sobre como funcionam as burocracias estalinistas: a direção do teatro havia decidido que apenas algumas poucas centenas de ingressos seriam colocadas à venda, enquanto a gigantesca maioria seria “distribuída” por organizações e instituições do Estado.
“A razão para a restrição na venda de bilhetes nunca foi explicada, mas houve o precedente do que aconteceu recentemente durante uma apresentação do músico Carlos Varela, como parte do festival de Havana World Music, quando parte do público acabou gritando “Liberdade, liberdade” quando Varela interpretou as suas canções mais críticas. As redes sociais denunciaram o que aconteceu com Pablo como uma manobra das autoridades para evitar que algo como isto voltasse a acontecer durante o concerto”, escreveu Vicent.
Devido aos protestos generalizados, a manobra, contudo, não vingou e o regime foi obrigado a oferecer o estádio da Cidade Desportiva de Havana e seus 15 mil lugares para o último encontro entre o Trovador da Revolução e seu amado, mas sofrido público.
Coerente e comovente até o final
E o trovador não deixou por menos. “Pablo cantou as suas canções de amor imortais (…) e entre elas incluiu as suas letras mais engajadas, as que apontam as manchas e promovem a reflexão, num equilíbrio que fluiu com a cumplicidade absoluta de um público muito ligado e dedicado, que o esperava há muito tempo”, escreveu o repórter, lembrando que ele abriu seu show com uma música pra lá de emblemática: “Marginal”, do álbum “Orígenes” (1994).
Como escreveu Vicent, “foi uma declaração de princípios, cheia de mensagens e sutilezas”: “Vengan todos a mi jardín / toquen y deshojen las flores a su gusto/Besen los labios cercanos con ternura / Derramen una lágrima por cada uno de nosotros / que incomprendido es…” (“Venham todos ao meu jardim / toquem e arranquem as flores à vontade / beijem os lábios perto de vós com ternura / derramem uma lágrima por cada um de nós / que somos tão incompreendidos…”).
“Sutileza” repetida em outras canções, a começar pela homenagem à comunidade LGBTI, com “El pecado original” (leia no próximo artigo), entoada a plenos pulmões pelas 15 mil pessoas presentes. O mesmo que aconteceu com “Éxodo”, presente no disco “Los días de gloria” (2000), cujo título é uma mescla de nostalgia, sarcasmo e crítica aberta ao regime.
“E depois vieram outras das suas composições mais marcantes sobre o que tem acontecido em Cuba nas últimas décadas, como Éxodo, que grita nos seus versos de abertura: “¿Dónde están los amigos que tuve ayer? / ¿Qué les pasó? / ¿Qué sucedió? / ¿A dónde fueron? / Qué triste estoy…” (“Onde estão os amigos que tive ontem? / O que lhes aconteceu? / O que aconteceu? / Para onde foram? / Que tristeza a minha…”), e que foi uma das canções em que a multidão entrou em transe e aplaudiu ao ponto de delirar”, comentou o jornalista do “El País”.
Gracias, hermano y compañero
Pablo faleceu depois de uma longa luta contra um câncer. Diante de sua morte, Díaz-Canel e outras figuras do regime fizeram declarações protocolares, exaltando a importância dele para a cultura cubana e seu povo.
Quanto a nós, contudo, a melhor forma de prestar homenagem a este “cantante” que se fez “hermano” em nossa latinidade e “compañero” em nossas lutas, sonhos e prazeres, passa, inclusive, apoiar aqueles e aquelas que, hoje, lutam contra o regime cubano e continuam, ao lado de Pablo Milanés, carregando seu sonho de uma revolução que realmente liberte a humanidade, sem burocracias, sem opressões.
Um “sonho” que pode parecer “marginal”, aos olhos daqueles que optaram por orbitar em torno de um sistema decadente como o capitalismo, mas que ainda é o único que pode alimentar as lutas capazes de fazer com que a humanidade possa, um dia, viver em plenitude, como diz a letra do Trovador: “Y juntos hagamos / un solo canto a la felicidad / que nos espera” (“E juntos vamos fazer / um único hino à felicidade / que nos espera”)
Em um ano em que já perdemos Elza Soares, Gal Costa, Rolando Boldrin e Erasmo Carlos, a morte de Pablo Milanés é, inegavelmente, uma mais a lastimar. Mas, uma daquelas perdas cuja dor vem acompanhada por um profundo sentimento de gratidão. Tanto pelo fato de termos tido o enorme prazer de compartilhar o planeta com alguém como ele, quanto pela generosidade com a qual ele nos brindou com suas trovas.