Dona de uma voz inconfundível, Elza Soares é daquelas cantoras que poderiam muito bem seguir a vida apenas com os louros da fama que já conquistou ao longo de sua carreira. Mas não. Ao contrário, aos 82 anos, segue na ativa e se reinventando a cada novo disco. Em sua nova fase, mais contemporânea, Elza deixa o tradicional samba um pouco de lado para ousar e experimentar mais com sons eletrônicos, sintetizadores e parcerias, abordando questões como o machismo, racismo e violência, trazendo para o estúdio muitos dos bordões que se grita nas ruas.
Lata d’água na cabeça
Elza nasceu em uma favela do Rio de Janeiro, filha de lavadeira e pai operário. Ainda criança ajudava a família subindo o morro com latas d’água e levando café para seu pai em uma pedreira. Em uma dessas idas e vindas, Elza conta que foi seguida por um homem que acabou fazendo com que ela derramasse o café. Seu pai, cansado de esperar, encontrou os dois brigando no mato e a obrigou a se casar com ele.
Elza foi vítima de violência doméstica e sexual. Por conta disso tornou-se mãe aos doze anos de idade quando deu à luz a seu primeiro filho. Aos quinze Elza viu seu segundo filho morrer de fome. Nessa época, chegou a trabalhar em uma fábrica de sabão mas foi demitida por cantar durante o expediente. Aos 21 Elza ficou viúva e mãe de 5 filhos.
Direto do Planeta Fome
Trabalhando como faxineira e com um filho doente, Elza resolveu se inscrever no programa de calouros da Rádio Tupi que, na época, era apresentado por Ary Barroso. Com uma roupa emprestada de sua mãe, ajustada com muitos alfinetes, e uma sandália “mamãe tô na merda”, brinca Elza com a baixa qualidade do calçado, fez sua primeira aparição pública em uma rádio (na época, as rádios possuíam auditórios). “Parecia um ET”.
Quando entrou no palco, todo o auditório gargalhou. Ary Barroso perguntou:
– Menina, o que você veio fazer aqui?
– Eu vim cantar.
– E quem é que disse que você canta?
– Eu sei que eu canto.
– E de onde você veio?
– Do mesmo planeta que você!
– E que planeta é esse?
– O Planeta Fome – respondeu Elza cheia de ódio e com algumas lágrimas, pensando em seu filho doente. O auditório se calou. Elza então cantou Lama, composição de Alice Chaves e Paulo Marques e, ao final, Ary Barroso anunciou: “Acaba de nascer uma estrela”. O sucesso imediato e o pouco dinheiro que ganhou, contudo, não foram suficientes para salvar a vida de seu filho.
De Madrinha da Seleção ao afastamento
Reconhecida desde seu primeiro disco (Se acaso você chegasse, 1960), Elza foi ao Chile em 1962 como madrinha da Seleção Brasileira. Lá impressionou o jazzista Louis Armstrong com quem quase se envolveu não fosse sua paixão por Garrincha. De volta ao Brasil, casou-se com o jogador.
Mas nada na vida de Elza Soares é tão simples. Garrincha era alcoólatra e submetia Elza a violência física e psicológica, com traições e humilhações. Em 1969, Garrincha alcoolizado capotou na Rodovia Presidente Dutra em um acidente que acabou vitimando a mãe de Elza. Após dezesseis anos casados, mais uma vez sua vida havia virado um inferno e então se divorciou do atleta.
Garrincha faleceu em 1983 de cirrose e, em 1986, o único filho do casal faleceu em um acidente de carro. Elza entrou num período de depressão e chegou a tentar suicídio. Decidiu rodar o mundo e se dedicar a sua carreira, “cantando para não morrer”. A cantora cogitou, inclusive, encerrar a carreira mas volta à cena em 1984 com Língua, em parceria com Caetano Veloso.
Ressurgimento
Consagrada pelo seu samba-jazz e sua voz rouca – inspirada no zunido do louva-deus e no lamento das lavadeiras – Elza lançou clássicos da música brasileira como A Bossa Negra (1960), Elza, Miltinho e Samba (1967), Sangue, suor e raça (1968) e Elza pede passagem (1972). Esse último marcado pelas releituras de grandes nomes como Vinícius de Moraes, Jorge Ben, Jocafi, Zé Rodrix, Gonzaguinha e outros.
Em 2002 Elza abre o milênio com Do cóccix até o pescoço que, embora seja um disco de samba, abre espaço para toda excentricidade característica de Elza. Os naipes de metal e scraches de rap no samba-soul de Jorge Ben e as viradas de surdos e timbaus baianos com Carlinhos Brown anunciam sua nova fase, mais ousada e contemporânea.
Reinvenção
Toda essa experimentação vai culminar em 2015 no excepcional A mulher do fim do mundo, vencedor do Grammy Latino de 2016 e eleito pelo The New York Times como um dos 10 melhores álbuns de 2016 ao lado de Beyoncé e David Bowie. Além da mistura de gêneros como o rock, rap e eletrônica, o álbum traz em suas letras temas como a angústia das grandes cidades, a negritude, transexualidade, machismo e violência doméstica – explicitamente na faixa Maria de Vila Matilde.
Três anos depois é a vez de Deus é mulher (2018), provocador desde seu título. “Mil nações, moldaram minha cara / A minha voz uso para dizer o que se cala” são os versos que abrem o álbum que, logo em seguida, traz Exu nas escolas. A faixa discute a intolerância religiosa e com sarcasmo denuncia o escândalo das merendas no governo PSDB em São Paulo.
Na esteira desses sucessos, vem seu último álbum: Planeta Fome, lançado esse ano. Totalmente experimental e com a participação de BaianaSystem, Orkestra Rumpilezz, Virginia Rodrigues, BNegão, Pedro Loureiro e Rafael Mike. Em suas letras Elza anuncia que “a carne mais barata do mercado já não está mais de graça”. E que “Essa aqui Neymar não dança na hora de meter gol / Mas os pretos avançam, Wakanda forever yo!”
Reinventada, Elza mostra que ainda tem fome. Fome do novo e de experimentação. Mesmo passando dos oitenta, completamente sensível aos temas contemporâneos e disposta a dar voz a isso. Mas não simplesmente para “vender disco”. Elza pode falar desses temas porque são os da sua vida. O que ela viveu. Se a vida sofrida de mulher negra e pobre, com altos e baixos, obrigou Elza a ressurgir de suas dificuldades, se reinventar é o parte genial de uma artista completa que faz da sua dor força e poesia.