Homens em Jericó

Uma terra de leite e mel”. A referência religiosa retirada do livro do Êxodo para a terra prometida de Canaã foi usada pela ditadura militar durante as campanhas de expansão das fronteiras econômicas para a Amazônia. Junto com a ideia da terra prometida vinha uma outra, tão falsa quanto, de que se tratava de um vazio demográfico, pronto para receber a chegada da civilização. A ditadura brasileira, contudo, não merece os louros por isso. O mesmo mote foi usado, mais de meio século antes, nas campanhas de ocupação sionista da Palestina. Vendida até hoje como “terra de leite e mel”, a Palestina também foi retratada como um vazio demográfico pronto para abraçar o retorno da civilização judaica. O saldo das ocupações, tanto da Amazônia mas principalmente da Palestina, nós já sabemos.

Ao final do século XIX viviam na Palestina cerca de 500 mil pessoas, 30 mil em Jerusalém. A região ainda fazia parte do Império Otomano e o árabe era a língua falada, mesmo entre os 5% judeus e os 10% cristãos. Muito diferente do regime de apartheid, checkpoints e muros que conhecemos hoje, o cotidiano da região foi registrado por diversos fotógrafos. Um deles, em especial, foi Khalil Raad, considerando o primeiro grande fotógrafo árabe na Palestina.

Vendedores de laranja.
Pesando trigo

A chegada da fotografia na região
Os primeiros registros fotográficos da região foram feitos pelo francês Federic Gobel Fiske, em 1839, quando registrou a cidade de Jerusalém com um daguerreótipo. A ida à região, contudo, não foi desinteressada. Nas primeiras décadas após a invenção da fotografia, fotógrafos europeus viajaram para a região interessados em locais sagrados e pontos importantes mencionados na Bíblia. Os álbuns fotográficos da Terra Santa eram um grande sucesso comercial na Europa.

É esse olhar colonialista que marca as primeiras décadas de fotografia na região. Não é de se espantar que muitos desses trabalhos fossem acompanhados de legendas e interpretações carregadas de um desdém chauvinista. Ou seja, um retrato “folclórico” da cultura palestina, observada sempre do ponto de vista estrangeiro.

A situação começa a mudar quando o patriarca armênio Issay Garabedian, líder religioso da Igreja Apostólica Armênia (cristã) na região, abriu em 1850 o primeiro estúdio fotográfico de Jerusalém. O estúdio oferecia cursos de fotografia para a comunidade armênia e formou a primeira geração de fotógrafos próprios da região. Foi um passo importante para a superação do olhar fotográfico colonialista.

Khalil Raad.

Aprendizado
Khalil Raad nasceu em 1854 na cidade de Bhamdoun, atualmente no Líbano. Seu pai era um cristão maronita que se converteu ao protestantismo, assassinado durante os Conflitos Sectários do Líbano de 1860. Após o episódio, sua mãe se mudou para Jerusalém com os filhos. Raad estudou fotografia com Garabed Krikorian, um discípulo formado pelo patriarca armênio e o primeiro palestino a, de fato, fazer da fotografia profissão. Seu estúdio ficava sediado na estrada de Jaffa. Krikorian, que já fazia fotografias de personalidades locais, de peregrinos e turistas, ganhou notoriedade ao fazer as fotos oficiais da visita do Kaiser Wilhem II à região.

Em 1890, Raad comprou uma briga com seu mentor ao abrir o próprio estúdio. Isso lhe rendeu anos de disputa. As pazes entre Raad e Krikorian só foi restabelecida quando John Krikorian, filho de Garabed, assumiu o estúdio iniciando uma parceria com Raad. Durante o período da Primeira Guerra Mundial, Khalil Raad esteve na Suíça estudando as recentes técnicas fotográficas desenvolvidas por Keller. Lá, conhece Annie Muller, assistente de Keller, com quem se casou após o conflito em 1919. Após o matrimônio, Raad morou em Talibiyya, uma aldeia próxima à Jerusalém onde chegou a ser prefeito mais tarde. Com a partilha da Palestina decretada pela ONU em 1947,  Raad e sua esposa se viram obrigados a se mudarem em 1948. Foram para Hebron, ao sul, e durante alguns meses estiveram de volta à Bhamdoun, cidade natal de Raad. Mais tarde, eles foram convidados pelo Bispo Ilya Karam para viver dentro do Patriarcado Ortodoxo Grego, onde viveu até sua morte em 1957.

Estúdio fotográfico de Raad, em Jaffa.

A produção da Raad
Khalil fotografou o cotidiano e os eventos políticos por quase 50 anos na região da Palestina, Síria e Líbano. Sua produção abarca mais de 1200 placas fotográficas em vidro, cartões postais e uma série de filmes não revelados. Seu trabalho só foi salvo da tomada sionista de Jaffa graças à ousadia de um amigo  italiano que trabalhava em uma livraria na mesma rua em que ficava o estúdio. Durante algumas noites o italiano escalava as muralhas da cidade velha para resgatar o acervo. Hoje ele pertence ao Instituto de Estudos Palestinos.

Em 1915, com o Império Otomano participando da Primeira Guerra Mundial, Raad foi convidado para registrar a preparação das forças armadas na região, em particular, o lançamento de barcos motorizados no Mar Morto pela marinha otomana com objetivo de fornecer suprimentos para a Batalha de Beersheeba. A ideia da cobertura foi de Ahmed Cemal Paxá, um dos líderes do Império. Sua aproximação com Paxá e com as forças armadas imperiais renderam-lhe uma produção substancialmente diferente da que ele vinha produzindo em seu estúdio. Raad viajou por Jericó, Beersheeba, Gaza, al-Arish, Hafir e outros locais retratando o cotidiano, as movimentações militares e fazendo retratos de oficiais. Isso atribui a sua fotografia também valor documental histórico.

Retrato do general Kriss von Krissestein
Alimentando o batalhão

A produção fotográfica de Khalil Raad vai na contramão do pensamento colonialista. Primeiramente porque não invisibiliza a população local, diferenciando-se abertamente do que era produzido por fotógrafos estrangeiros, e com isso produz importantes registros que questionam o suposto vazio demográfico de que falam as propagandas sionistas de ocupação. Em segundo, porque não retrata a cultura local como algo folclórico, em uma postura tipicamente eurocêntrica. Raad nos oferece o registro do olhar autóctone, que valoriza a riqueza cultural, um olhar sensível o bastante para dissipar a visão preconceituosa de que a região era ocupada por povos bárbaros.

Pastor com funda

Khalil Raad conseguiu captar o seu momento histórico. As roupas tradicionais, os agricultores trabalhando nos laranjais, as movimentações políticas. É dele os retratos de Izz al-Din al-Qassam e Said al-As, primeiros líderes nacionalistas a lutarem contra a colonização sionista e o mandato britânico. Próximo ao que se pode chamar de fotojornalismo, Raad não deixa passar despercebidos pequenos detalhes, fato revelado pela cuidadosa composição de suas fotografias em que nenhum plano de fundo é casual.

A produção fotográfica de Raad tem valor artístico, cultural, histórico e político. É um contraponto à visão ofuscante ocidental que, conscientemente ou não, serviu aos propósitos do colonialismo.

Abaixo, uma seleção de fotos de Khalil Raad.