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Por Jorge Martínez

Eles também alertaram que a transição para uma sociedade sem classes “ainda apresenta em todos os seus aspectos, econômico, moral e intelectualmente, a marca da velha sociedade da qual procede”[1].

A experiência da revolução russa dirigida pelos bolcheviques durou muito mais do que os 74 dias da Comuna de Paris. Em suas mais de sete décadas de existência, o Estado operário russo, desde o período revolucionário com Lênin na vanguarda, até as longas décadas da contrarrevolução stalinista, enfrentou não apenas a dura prova de ter sucesso como uma revolução. Mas já, com a classe operária no poder sob a liderança dos bolcheviques enfrentou na prática as manifestações dessas “marcas de nascença” do novo estado operário, bem como as contradições não previstas por Marx e Engels do triunfo da revolução socialista em um país com um capitalismo atrasado.

Em fevereiro de 1917, em plena guerra mundial, triunfou uma insurreição que conseguiu derrubar o czar, e após isso foi estabelecido um governo provisório com a perspectiva de terminar o acerto de contas com o czarismo e desenvolver um estado totalmente burguês na Rússia. Os sucessivos meses de convulsão política, tentativas contrarrevolucionárias e uma situação de duplo poder, prepararam a segunda revolução, a de outubro em que os sovietes tomaram o poder graças à direção dos bolcheviques, que por sua vez tiveram o papel decisivo de Lênin, que acaba concordando com a concepção de Trotsky sobre a natureza da revolução na Rússia e consegue fazer o partido superar suas vacilações e dirigir com sucesso a revolução.

Mas a existência decisiva do partido bolchevique e de sua direção revolucionária não podia minimizar o fato de que a revolução triunfou em pleno império russo, em que havia o peso do atraso feudal no campo, o predomínio do campesinato sobre as demais classes na população (80%), a existência de um capitalismo frágil dependente do capital estrangeiro e uma classe operária minoritária. Essas “marcas de nascença” próprias da Rússia constituíam um grande obstáculo às tarefas do programa socialista, situação por si, já desfavorável, que se agravava com a desastrosa situação de guerra que sangrava a Europa.

Para a direção que liderou a revolução de outubro, o fundamental era o triunfo da revolução socialista na Europa. Eles, especialmente Lênin e Trotsky, estavam conscientes da precariedade e fragilidade da revolução russa e que sua sorte dependia fundamentalmente da ajuda internacional que a classe operária europeia pudesse lhe proporcionar com o triunfo, nos principais países capitalistas, das revoluções socialistas que levassem a classe operária ao poder, derrotassem o imperialismo e começassem a construção do socialismo em todo o mundo.

Por isso, para eles, a consolidação dos revolucionários em uma organização, a Internacional Comunista (III Internacional) para impulsionar e dirigir a revolução mundial era a principal estratégia, e até a própria existência da Rússia Soviética estava subordinada a ela. Enquanto a revolução não triunfasse na Alemanha ou em algum outro país europeu, tudo que os bolcheviques pudessem fazer no poder não seria nada mais do que medidas contingentes destinadas à sobrevivência da revolução enquanto a revolução mundial chegasse.

O Regime Revolucionário: a Rússia dos Sovietes

A tomada do poder dirigida pelos bolcheviques foi ratificada pelo II Congresso Pan-Russo dos Sovietes, que também aprovou os primeiros decretos que deram forma ao novo poder, respondendo às demandas das massas de operários, camponeses e soldados: O decreto de uma paz justa e democrática dirigida aos governos e povos das potências imperialistas em guerra; a expropriação sem indenização da terra dos nobres, latifundiários e da igreja; e o controle operário das fábricas. Além disso, foi definida a questão do poder, uma questão de vital importância e de forte controvérsia dentro do Partido Bolchevique e entre este e os outros partidos. A questão era: com a derrubada do governo provisório de Kerensky, quem deveria exercer o poder?

A política de Lênin era dar todo o poder aos Sovietes, mantendo a hegemonia dos bolcheviques, o único partido capaz de executar os decretos aprovados e continuar a dirigir a revolução e o novo estado operário. Os demais partidos socialistas (Mencheviques, Socialistas Revolucionários e Internacionalistas) mergulharam em profunda crise provocada pela colaboração com a burguesia no deposto governo provisório, além de serem contra a insurreição, exigiram que o poder fosse entregue a um governo de coalizão que estendesse uma ponte à burguesia e às potências estrangeiras. Em suma, continuar com um governo de colaboração de classe. Outros mantinham as formas ultrapassadas da democracia burguesa, clamando por uma solução “democrática”. Mas a experiência dos operários, soldados e camponeses já havia se esgotado com as instituições da democracia burguesa. A Duma e o governo provisório, incluindo os ministros socialistas, não tinham feito mais que enganar e adiar as reivindicações das massas, ao mesmo tempo em que mantinham a guerra imperialista e reprimiam e aprisionavam a oposição. Apenas continuavam as expectativas quanto à eleição e realização da Assembleia Constituinte, assunto que posteriormente, apesar das polêmicas, também mostrou sua obsolescência em meio à construção de um novo estado da classe operária.

Por fim, o Congresso dos Sovietes termina aprovando a proposta dos bolcheviques em que se concretizava, finalmente, a palavra de ordem de todo o poder aos sovietes. Apesar dos protestos dos Socialistas Revolucionários (SRs) e do sindicato ferroviário sob seu controle, que insistiam em um governo de coalizão, a proposta foi aprovada por uma maioria esmagadora.

O regime soviético

Desde os dias da revolução, a insurreição e a tomada do poder sofreram a tentativa de serem desfiguradas ao serem consideradas como um golpe de Estado realizado por uma minoria que impôs seu poder ao governo provisório “democrático”. Ainda hoje persiste essa ideia simplista e policialesca, típica das teorias da conspiração que continuam a discutir a teoria do golpe de estado. Lênin e Trotsky assumiram a responsabilidade de demonstrar a verdadeira natureza da tomada do poder. Os bolcheviques conseguiram conquistar a maioria dos sovietes para sua política sintetizada em suas consignas: “Todo o poder aos Sovietes” e “Pão, paz e terra”. Por isso, o momento da insurreição não caiu como um raio em um céu sereno. Era esperado pelas massas, que já haviam mostrado que não suportavam mais Kerensky em julho. O apoio foi majoritário nos sovietes, nas frentes de guerra e no campo. A revolução não era uma questão de uma elite às costas do povo. Lênin tinha plena confiança na “iniciativa criativa das massas”, isto é, na capacidade da classe operária e das massas de ter uma iniciativa revolucionária de ação e organização. As ruas, os quartéis e o campo fervilhavam de ímpeto revolucionário e Lênin soube interpretá-los.

Às vésperas da revolução, Lênin defendia com veemência o poder para os sovietes em oposição a outras fórmulas tangenciais ao problema central do poder que a classe exerce. Nesse sentido, é totalmente consequente com as lições da Comuna de Paris e com o pensamento de Marx e Engels. A fórmula de Lênin correspondia ao problema fundamental de uma revolução operária e socialista: destruir o velho aparelho do Estado para construir sobre as suas ruínas outro que respondesse à missão histórica da classe operária de conduzir a superação do capitalismo para a construção do socialismo. Debatendo com aqueles que defendiam as saídas no marco da democracia burguesa, Lênin dizia:  “O poder para os sovietes” significa transformar completa e radicalmente a velha máquina do Estado, um aparato burocrático que impede tudo o que é democrático; significa suprimir esse aparato e substituí-lo por um novo, popular, isto é, autenticamente democrático, o dos sovietes, o da maioria organizada e armada do povo: operários, soldados e camponeses; significa oferecer iniciativa e independência à maioria do povo não só na eleição dos deputados, mas também na administração do Estado e na realização de reformas e transformações[2].

Em vários de seus escritos nos dias anteriores à insurreição, ele demonstrava confiança no poder verdadeiramente democrático dos soviéticos, ao ponto de ser garantia de uma revolução relativamente pacífica, como ele argumenta em A Revolução Russa e a Guerra Civil ( Setembro de 1917).

O desenvolvimento pacífico de qualquer revolução é, em geral, uma coisa extraordinariamente rara e difícil, uma vez que a revolução representa a inflamação máxima das mais graves contradições de classe. Mas em um país camponês, quando a aliança do proletariado com o campesinato pode dar paz às massas exauridas pela guerra mais injusta e criminosa e dar toda a terra aos camponeses; em tal país, em um momento histórico tão excepcional, o desenvolvimento pacífico da revolução é possível e provável com a passagem de todo o poder aos sovietes[3].

Lênin coloca como hipótese as Tarefas da Revolução

Se os sovietes assumissem todo o poder, já poderiam garantir hoje – e provavelmente esta seja sua última  oportunidade – o desenvolvimento pacífico da revolução, a eleição pacífica dos deputados pelo povo, a luta pacífica dos partidos dentro dos sovietes, a verificação prática dos programas dos diferentes partidos e a passagem pacífica do poder de um partido a outro[4].

A política resoluta com que Lênin impulsionou a insurreição de outubro, a transferência do poder para os sovietes e as primeiras medidas do governo operário era coerente com esta visão. No entanto, a ação contrarrevolucionária foi decididamente violenta e sangrenta desde o início, obrigando-os a responder pela força para conseguir a sobrevivência da revolução.

Os sovietes e a democracia operária

Os sovietes revolucionários continuaram a experiência iniciada na Comuna de Paris. Foram  sua continuidade e o instrumento através do qual principalmente os operários, mas também os soldados e camponeses puderam exercer a “iniciativa criativa” e governar as suas próprias vidas. Os sovietes, formados como organizações de luta das massas contra o czarismo, transformaram-se ao colocar essa natureza da luta em outro plano, o da luta pela sobrevivência da revolução e o de governar para aplicar o programa revolucionário.

Os sovietes foram conselhos compostos por delegados eleitos na base das fábricas, bairros, regimentos e campos. Tomando a descrição de Pierre Broué[5], tinham autonomia para resolver as questões locais, bem como a obrigação de fazer cumprir os decretos do poder central. Exerciam funções executivas e legislativas com base em assembleias deliberativas e democráticas. A eleição dos membros dos sovietes é feita pelo voto com base no critério de classe, em que os operários tinham maior número de membros nos sovietes em relação ao campesinato. Além disso, quem emprega mão de obra assalariada perde o direito de voto. Qualquer membro do soviete ou de qualquer outro cargo no estado é revogável.

A questão das liberdades e da democracia foi abordada desde o início, garantindo-as sob o critério de classe (maiores liberdades para os trabalhadores) e desde que não colocasse em risco a ditadura do proletariado. O regime soviético começou garantindo amplas liberdades democráticas. Por exemplo, novamente proibiu a pena de morte, que mais tarde foi forçado a reintroduzir em 1920, no auge da guerra civil. Mesmo as primeiras prisões de contrarrevolucionários foram bastante benignas. O general branco Krasnov depois de ser preso foi libertado, com o compromisso de não agir mais contra a revolução. Depois ele escapou e organizou parte do terror branco.

O próprio Lênin pretendia conceder grande liberdade de imprensa e organização, insistia em que o poder das massas através dos sovietes fosse realmente eficaz.

A maioria dos partidos que existiam antes de outubro continuaram a atuar no novo regime soviético. Durante os primeiros meses os Socialistas Revolucionários de esquerda e de direita, os mencheviques, grupos anarquistas e até o partido burguês dos Kadetes tiveram a possibilidade de agir publicamente, mantendo suas instalações e jornais, até agitando contra os bolcheviques e o poder soviético. Nas eleições para a Assembleia Constituinte, somente em Petrogrado 19 partidos participaram, e nacionalmente se apresentaram partidos socialistas, burgueses e de minorias nacionais[6].

 Mas os partidos da oposição não se limitaram a debates nos sovietes, nem a expressar suas opiniões sobre os assuntos mais candentes e polêmicos. Tanto os mencheviques como os SRs continuaram a considerar a insurreição e o estado soviético um grave erro, e sua atuação política estava dirigida ao fracasso dos bolcheviques, para assim retomar o caminho da democracia burguesa. Os mencheviques acabaram apoiando a contrarrevolução branca e os SR, fiéis à sua origem terrorista, realizaram várias ações terroristas com o objetivo de desestabilizar o governo bolchevique. O ataque contra Lênin em agosto de 1918, no qual ele foi ferido, foi perpetrado por um terrorista do SRs. Os cadetes desde o início conspiraram com os generais brancos na formação dos exércitos brancos.

As circunstâncias da guerra civil, as posições dos SRs e dos mencheviques que oscilavam entre o apoio à contrarrevolução e o apoio aos sovietes fizeram  com que as medidas contra esses partidos e seus jornais não fossem permanentes. Isso mostra que não havia um “princípio” para estabelecer um regime de partido único ou para suprimir as liberdades a priori. As restrições às liberdades políticas foram ditadas pela necessidade de defender a ditadura do proletariado e garantir sua sobrevivência em meio a uma realidade hostil.

O regime soviético, depois de decretado, foi se construindo em meio às complexas e enormes dificuldades que o momento representava. Este regime tinha uma perspectiva fundamental: ser o ponto de apoio político para o desenvolvimento das forças revolucionárias, tanto na Rússia como no mundo.

O fundamental era a perspectiva internacional da revolução. Para Lênin e Trotsky, o triunfo da revolução socialista na Europa era seu principal objetivo e esperança de sobrevivência. Eles compreendiam plenamente tanto o caráter internacional do capitalismo, especialmente em sua fase imperialista, quanto o enorme obstáculo à construção do socialismo que significava o triunfo da revolução em um país atrasado. Este caráter internacionalista de Lênin e Trotsky e do partido bolchevique era fundamental e o melhor ponto de coesão para os consequentes revolucionários internacionalistas que se desorganizaram com a traição da Socialdemocracia e da Segunda Internacional.

A partir do internacionalismo bolchevique, já no poder, o primeiro problema a ser superado na arena internacional era a guerra imperialista que continuava. Daí a importância do apelo aos povos da Europa por uma paz democrática e justa, sem anexações. As negociações de paz de Brest-Litovsk entre a Alemanha e a Rússia geraram uma forte discussão dentro do próprio partido. A necessidade urgente de acabar com esta frente de batalha implicava aceitar condições e concessões vergonhosas à Alemanha, que para alguns líderes bolcheviques eram inaceitáveis ​​e, para outros, traição direta. Finalmente, a linha de Lênin de aceitá-las prevaleceu. O imperativo era ganhar tempo enquanto o governo operário na Rússia se consolidava e a revolução na Europa triunfava. Apesar de os processos revolucionários terem ocorrido em vários países, nenhum conseguiu ter sucesso. Essas derrotas não minaram a confiança de Lênin e Trotsky na revolução mundial, mais cedo ou mais tarde ela viria. Por isso uma das tarefas à qual deram maior importância foi a reorganização dos revolucionários na Terceira Internacional.

A questão do desenvolvimento das forças revolucionárias na Rússia era a outra grande tarefa. Avançar para a “construção da ordem socialista” implicava partir do poder político nas mãos dos sovietes para reorganizar a economia em novas bases. É decretado o controle operário sobre todas as atividades industriais, comerciais, agrícolas e de serviços por parte de comissões ou conselhos constituídos por trabalhadores, o segredo comercial é abolido e as comissões de controle operário podem ordenar tudo o que corresponde à produção (mínimo de desempenho, preço das mercadorias, etc.) Essas comissões também tiveram a missão de elevar a produção semi-paralisada até o momento. Isso implicava a abnegação e disciplina dos operários para produzir os bens necessários para alimentar e satisfazer as necessidades básicas da população e para combater a sabotagem.

Outro decreto propõe a nacionalização dos bancos, o desconhecimento da dívida externa e interna do país, a implantação geral do trabalho obrigatório entre 16 e 55 anos para todos os cidadãos, a distribuição controlada de bens de consumo básicos aos cidadãos.

Os bolcheviques ainda não consideravam a expropriação da propriedade privada dos meios de produção[7], sabiam que, num primeiro momento, a propriedade dos capitalistas seria mantida enquanto a classe operária adquiria a experiência e formação necessárias para assumir o controle total da produção, processo cujo controle operário é também instrumento de aprendizagem. As circunstâncias, especialmente a necessidade de sustentar a guerra civil contra os exércitos contrarrevolucionários, fizeram com que o Estado assumisse o controle dos ramos estratégicos da economia.

Mas além do atraso histórico da economia russa, o aparato produtivo estava semidestruído pelos desastres da guerra e pelas crises políticas que atravessaram 1917. A isso se somaram as ações de sabotagem, especulação e pilhagem dos burgueses e funcionários hostis aos bolcheviques e ao novo poder. Esses problemas foram seguidos pela guerra civil, em que a ação combinada dos exércitos brancos, o imperialismo e todos os inimigos da revolução, incluindo uma boa parte dos mencheviques e SRs atacariam o nascente Estado soviético com o “Terror Branco”. Então, a necessidade de combater a contrarrevolução foi imposta com a formação e organização do Exército Vermelho, tarefa confiada a Trotsky. Assim, durante a guerra civil, a prioridade no campo e na cidade era garantir o que fosse necessário para o combate em defesa da revolução.

A partir do triunfo da guerra civil, passou a ser prioridade a resposta aos problemas da economia. A necessidade de subordinar a produção do campo e da indústria à garantia de alimentos e suprimentos para os soldados do Exército Vermelho adiou a resolução dos problemas mais básicos da população. A escassez e a fome continuaram constantes no campo e na cidade.

O descontentamento estava crescendo no campo. Os camponeses estavam cansados ​​de suas colheitas serem confiscadas para alimentar os soldados. Por não poderem vender suas safras, prevaleceu o cultivo apenas do necessário para sua sobrevivência. Na cidade, o controle operário sobre a produção não era suficiente para levantar a indústria e a produção. Os melhores operários estavam na linha de frente, muitas indústrias continuavam paralisadas, por falta de matéria-prima ou por simples abandono e desorganização. Nas ruas prevalecia a sobrevivência individual, e a exortação à disciplina e ao objetivo supremo do socialismo não eram suficientes para manter alta a moral revolucionária, mas também não era suficiente a coerção típica do comunismo de guerra. O descontentamento estava crescendo perigosamente.

Então, uma nova política foi necessária. A necessidade de revitalizar a economia impôs a implantação de medidas de caráter capitalistas, voltadas para o estímulo à produção de excedentes no campo por meio de mecanismos de mercado. Novamente, essa medida de emergência foi uma medida temporária, enquanto se conseguisse superar a fome e levantar a indústria.

Essas medidas poderiam fortalecer os camponeses ricos (Kulaks) que, mais cedo ou mais tarde, buscariam expressão política para salvaguardar a posição vantajosa que as medidas de livre mercado lhes dariam. Esse risco seria neutralizado fundamentalmente por impostos progressivos em espécie, enquanto a coletivização do campo avançava pela via do convencimento ao campesinato pobre.

A ruptura com o regime soviético

Durante um período que se estende por cerca de dez anos, do fim da guerra civil ao início da coletivização forçada do campo, o regime revolucionário junto com o próprio Partido Comunista (Bolchevique) e a Terceira Internacional sofrem um processo de burocratização que implica uma verdadeira contrarrevolução no campo político dentro da União Soviética.

Esse período coincidiu com a doença e a consequente morte de Lênin, que em seus últimos meses de vida começou a alertar sobre o rumo burocrático que o partido já vinha apresentando, mas a morte interrompeu o início dessa batalha contra a burocratização. Depois de sua morte, Stalin e seus aliados de plantão, por meio de intrigas, calúnias e amálgamas, foram isolando e suprimindo setores críticos do partido, o que na prática implicava a aniquilação de praticamente todos os quadros que lideraram a revolução de 1917.

A guerra civil dos primeiros anos trouxe consequências de milhões de mortes e o prolongamento das dificuldades econômicas para as massas, mas também implicou um enfraquecimento dos dois pilares do Estado soviético. O melhor da classe operária protagonista da revolução de 1917, a mais abnegada, disciplinada e ganha para o programa socialista foi também a que primeiro marchou para a linha de frente para defender a revolução do terror branco. Junto com eles, a militância do partido bolchevique, formada durante os duros anos anteriores a 1917, foi uma parte fundamental do Exército Vermelho que defendeu corajosamente a revolução e conseguiu derrotar a contrarrevolução branca.

Este triunfo custou milhões de vidas, incluindo a de grande parte dessa vanguarda operária e bolchevique. Nas fábricas, os postos de trabalho são preenchidos por uma classe trabalhadora mais inexperiente, recém-recrutada no campo, golpeada e desmoralizada por anos de guerra e adversidades. Sem treinamento técnico e consciência socialista, a energia revolucionária enfraqueceu.

Por outro lado, existe um processo semelhante no próprio partido. Desde 1917, o partido cresceu exponencialmente após o triunfo da revolução de outubro. Mas não apenas os melhores da classe operária entraram no partido. O triunfo dos bolcheviques fez com que muitos parasitas e oportunistas entrassem no partido na esperança de obter benefícios ao lado dos vencedores. O processo de falência dos antigos partidos também fez com que muitos militantes formados no reformismo e no oportunismo passassem a buscar expressão política no partido bolchevique.

No nível do estado, embora os sovietes fossem uma ferramenta poderosa, sua eficácia na gestão do estado também dependia de sua capacidade de resolver inumeráveis problemas que surgiam todos os dias. Nesse sentido, foi necessário, desde o início, manter certas funções e cargos de funcionários do antigo estado. Essa camada de funcionários, hostil aos bolcheviques no início, tinha a mesma esperança que os SRs e os mencheviques de que fracassariam e seriam derrotados. Mas os bolcheviques passaram no teste dirigindo a guerra civil, e muitos burocratas acabaram se resignando ao novo poder e buscando dentro dele preservar seus interesses. Essa casta de servidores públicos prosperou em contraste com o esgotamento da classe operária e seu partido. E buscou expressão política dentro do partido governante.

Essa expressão política acabou sendo o stalinismo. Stalin, que já havia demonstrado comportamentos burocráticos e tendências à intriga e ao autoritarismo, alertados pelo próprio Lênin em seu testamento, acabou reunindo ao seu redor os quadros mais vacilantes e gradativamente aos setores mais conservadores do aparelho partidário e aos novos membros do partido provenientes da velha burocracia czarista.

Ao contrário do partido bolchevique dos tempos de Lênin, em que a característica fundamental era os militantes profissionais, forjados na clandestinidade, a disciplina, que construíam um partido com centralismo democrático, no qual as diferenças, lutas internas e debates eram normais, o Partido Comunista no início da década de 1930 era um partido monolítico, onde as decisões eram tomadas em uma pequena cúpula e a base só tinha a possibilidade de obedecer e aplicar o que vinha de cima.

Nessa época, Stalin e seus aliados justificavam todo seu método e suas políticas em uma suposta continuidade do pensamento e as orientações de Lênin. Esta ideologia, caracterizada pela idolatria, a mentira histórica e a miséria teórica, foi chamada erroneamente de “leninismo”. Mas esta ideologia nada mais é do que a degeneração dos postulados de Lênin e uma ruptura com a experiência revolucionária, o programa e a teoria marxista. Construiu uma doutrina estéril, desprovida de toda dialética materialista, esquemática e vulgar, que tentou construir uma justificativa teórica ao abandono da estratégia da revolução mundial, para a colaboração de classes e para a burocracia stalinista.

Em praticamente todos os aspectos da vida soviética, essa contrarrevolução foi expressa. Os avanços sociais conquistados com sangue e sacrifício, gradualmente retrocederam, a estratificação e a desigualdade aumentaram a cada dia entre uma casta de burocratas do partido no poder do Estado em contraste com a classe operária e o campesinato, consumidos em privações e repressão.

Do ponto de vista do regime político, a relação entre o partido no poder (o Partido Comunista) e os sovietes deixou de ser uma relação entre uma vanguarda política que dirige e educa os operários e por meio deles todas as massas na condução do Estado, da economia e da sociedade, para se transformar em seu oposto, sufocar a iniciativa revolucionária, impor um controle totalitário e antidemocrático para garantir o controle político e os privilégios da nova casta burocrática.

Todas as medidas restritivas da democracia operária no Estado, na sociedade e no partido; e as medidas econômicas capitalistas (NEP), eram para Lênin e a direção revolucionária medidas temporárias que tinham como único objetivo garantir a sobrevivência do Estado operário diante das ameaças contrarrevolucionárias.

Mas para Stalin e a casta burocrática, a democracia operária e as liberdades democráticas, bem como a consciência e a ação revolucionária das massas, ameaçavam seu poder e privilégios. No campo econômico, o que defendiam eram as bases sociais e econômicas que sustentavam seus privilégios.

Desse modo, a atividade criativa e revolucionária das massas expressas nos sovietes, defendidas por Lênin, sob Stalin perdeu todo o seu ímpeto e acabou sendo uma casca formal do verdadeiro poder: uma burocracia estatal entre o partido comunista e os órgãos do Estado foi substituída por uma casca formal, tendo como suporte a repressão brutal de qualquer início de descontentamento ou oposição.

Socialmente, as desigualdades ao invés de diminuirem, o que se esperaria de um processo de construção de um estado operário, aumentaram, como resultado do fortalecimento dos partidos e funcionários do estado em contraposição à persistência da escassez, privação e repressão para as massas.

O internacionalismo proletário defendido por Lênin e Trotsky foi substituído por um retorno ao nacionalismo, tomando a derrota dos levantes revolucionários na Europa nos anos 1920 e a sobrevivência da União Soviética em meio a um mundo imperialista hostil, como uma demonstração de que era possível, construir o socialismo na Rússia, independentemente do destino da revolução mundial. A partir disso, ele acaba adotando a pseudo-teoria do Socialismo em um único país.

A relação com o campesinato também mudou. Lênin e Trotsky sempre defenderam uma política de convencimento das vantagens do socialismo e da produção coletiva e técnica do campo em oposição aos velhos métodos e costumes de produção herdados do feudalismo. Eles sabiam que isso não seria fácil nem automático e dependia, por um lado, da emancipação dos camponeses dos latifundiários e, sobretudo, da manutenção da classe operária em seu papel dirigente e hegemônico sobre a sociedade, ou seja, a ditadura do proletariado.

Consequentemente, a principal política era o convencimento paciente. O sentido dos decretos de distribuição da terra fazendo concessões ao campesinato na posse da terra, postergando a socialização completa da propriedade rural.

Também foi expresso por Trotsky em 1933

A ditadura do proletariado como organização para a liquidação dos exploradores era necessária para reprimir os latifundiários, os capitalistas, os generais e os kulaks, na medida em que apoiassem as camadas possuidoras. Não se pode ganhar os exploradores para o socialismo; sua resistência precisava ser quebrada, custasse o que custasse. Durante a Guerra Civil, foi quando a ditadura do proletariado exerceu mais o seu poder.

Para o campesinato, como um todo, a tarefa era e é completamente diferente. É preciso conquistar o campesinato para o regime socialista. Devemos mostrar-lhe na prática que a indústria estatal pode fornecer-lhe bens em condições muito mais vantajosas do que as prevalecentes sob o capitalismo e que o trabalho coletivo na terra é mais frutífero do que o trabalho individual[8].

Mas a política de Stalin foi diferente. A coletivização forçada do campo substituiu a política leninista de convencimento. Diante do fortalecimento dos Kulaks e do desenvolvimento de perigosas tendências capitalistas por fora do controle do aparelho, Stalin, que há vários anos se apoiava nesses ricos camponeses, acabou impondo a eles e aos camponeses pobres a violenta expropriação das terras, as safras e os animais, o que voltou a gerar descontentamento, protestos e um colapso na produção de alimentos.

Dentro do partido, quando a proibição de frações e grupos se tornou permanente, foi seguida pela perseguição e expulsão de qualquer dirigente ou militante que fizesse críticas ao aparelho. A década de 1930 foi caracterizada por prisões, deportações, assassinatos e falsos julgamentos, nos quais membros da velha direção bolchevique caíram um a um e Trotsky foi primeiro expulso do partido, depois exilado para terminar assassinado por um agente stalinista no México. Não havia nem mesmo uma garantia para os que serviram aos interesses de Stalin. Seus ex-aliados Kamenev, Zinoviev, Bukharin, entre outros, depois de cair em desgraça acabaram sendo acusados ​​de contrarrevolucionários, agentes do imperialismo, agentes do fascismo, etc.

A Cheka, órgão criado durante os primeiros anos para reprimir as atividades contrarrevolucionárias e de sabotagem, foi substituída pela GPU, uma polícia política mais próxima da Okhrana czarista do que da Cheka, encarregada de prisões em massa, tortura e espionagem. Em 1936, começaram os Processos de Moscou, farsas judiciais em que praticamente toda a geração de militantes e dirigentes bolcheviques foi presa, condenada e executada.

As dimensões do expurgo indicam que o objetivo alcançado por Stalin era aniquilar a vanguarda revolucionária responsável por ter dirigido a revolução.

A comparação das listas dos executados com as dos membros dos órgãos dirigentes é igualmente instrutiva: uma cifra superior à maioria absoluta dos membros do Comitê Central de 1917 a 1923, os três secretários do partido entre 1919 e 1921, a maioria do Politburo entre 1919 e 1924 foram eliminados. Entre 1924 e 1934, fomos obrigados a interromper a comparação por falta de dados. Em todo caso, dos 139 titulares ou suplentes que o Congresso de 1934 elegeu para fazer parte do Comitê Central, pelo menos dez já estavam presos durante a primavera de 1937, outros 98 foram presos e executados durante o biênio de 1937-1938, 90 deles entre o segundo e o terceiro processo de Moscou. Apenas 22 membros, ou seja, menos de um sexto, voltarão a encontrar-se no Comitê Central nomeado em 1939: a grande maioria dos ausentes, já havia sido executada nesta época[9].

De muitas vozes, tem-se insistido em apontar o terror stalinista e a burocratização da URSS como uma consequência direta das concepções de Lênin sobre o partido, o Estado e a luta política. Mas tanto as idéias de Lênin, expressas em seus escritos, sua experiência concreta como dirigente do partido bolchevique e do Estado operário, quanto à própria evidência histórica, mostram que o estalinismo, contrário a um “desenvolvimento”, um “desvio” do leninismo e do marxismo significou uma ruptura, uma nova realidade política arraigada na URSS e depois nos demais estados operários que surgiram no segundo pós-guerra.

A diferença fundamental entre Lênin e o período revolucionário dos primeiros anos da União Soviética e Stalin e o processo de burocratização e degeneração desse mesmo Estado, é como enfrentaram as “marcas de nascença” capitalistas aprofundadas pelas adversidades e fortes contradições que implicou o triunfo da revolução socialista em um país atrasado.

Lênin manteve a confiança na classe operária e, portanto, uma política de apelo à luta de classes e à iniciativa revolucionária das massas, e em que elas são capazes de dirigir um Estado ao socialismo, e que diante das ameaças e do perigo contrarrevolucionário, as restrições à democracia operária e às liberdades dependem das necessidades concretas e são, em todo caso, medidas transitórias, destinadas a desaparecer.

Por outro lado, Stalin frente às contradições e as “marcas de nascença”, apesar do seu passado bolchevique, acabou por ser a expressão da política dos interesses da burocracia, oposta à democracia operária e à participação das massas no Estado através dos sovietes. A supressão totalitária da democracia operária, a centralização absoluta e burocrática dos assuntos do Estado e da sociedade através do aparato partidário foram a garantia da sobrevivência da burocracia e de seus privilégios e, no final, como mostrou a restauração do capitalismo na URSS e os demais estados operários, foi o principal motivo da asfixia e do colapso das bases sociais e econômicas dos Estados operários.

Referências

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———. «Las tareas de la revolución». En Obras Escogidas, Vol. 7. Moscú: Editorial Progreso, 1973.

Marx, Karl. «Crítica al Programa de Gotha.» En Carlos Marx y Federico Engels obras escogidas en dos tomos, Vol. II. Moscú: Editorial Progreso. Accedido 26 de noviembre de 2019. https://www.marxists.org/espanol/m-e/1870s/gotha/gotha.htm#iv.

Pipes, R. La revolución rusa. DEBATE. Penguin Random House Grupo Editorial España, 2016. https://books.google.com.co/books?id=CzoxDQAAQBAJ.

Trotski, León. «Control obrero y nacionalización». En Naturaleza y dinámica del capitalismo y la economía de transición. Buenos Aires: CEIP León Trotsky, s. f.

———. Historia de la Revolución Rusa. 3 vols. Bogotá: Pluma, 1982.

———. «La degeneración de la teoría y la teoría de la degeneración». Accedido 16 de noviembre de 2021. https://ceip.org.ar/La-degeneracion-de-la-teoria-y-la-teoria-de-la-degeneracion.

[1] Marx, «Crítica al Programa de Gotha.», 15.

[2] Lenin, «El problema fundamental de la revolución», 93

[3] Lenin, «La revolución rusa y la guerra civil», 98

[4] Lenin, «Las tareas de la revolución», 105.

[5] Broué, El Partido Bolchevique, 67.

[6] Pipes, La revolución rusa, 585.

[7] Trotski, «Control obrero y nacionalización», 229.

 

[8] Trotski, «La degeneración de la teoría y la teoría de la degeneración».

 

[9] Broué, El Partido Bolchevique, 213.