Bernardo Cerdeira, de São Paulo (SP)
Trágico. Brutal. Comovedor. Inspirador. Todos esses adjetivos, e muitos mais, se aplicam ao livro “Comunistas contra Stalin: massacre de uma geração” que a Editora Sundermann acaba de publicar, pela primeira vez em língua portuguesa.
Em suas páginas, o historiador francês Pierre Broué (1926-2005) conta uma história, até agora, ignorada ou minimizada pelos historiadores, mesmo aqueles que se reivindicam marxistas: a resistência heroica dos comunistas, especialmente os da Oposição de Esquerda trotskysta, contra a ditadura stalinista.
Broué diz que é “uma história que foi zelosamente ocultada durante mais de meio século”. Mas, quem se ocupou com tanto zelo dessa operação de ocultamento? É claro que, acima de todos, estava o stalinismo. Ao calar as vozes da Oposição e ocultar o massacre, Stalin buscava apresentar-se ao proletariado de todo o mundo como o herdeiro da Revolução de Outubro e único representante do comunismo, para defender mais facilmente os privilégios da casta burocrática.
Mas, o stalinismo não era o único interessado. O imperialismo e seus ideólogos sempre trataram de ocultar essa história. Assim, esperavam apresentar a contrarrevolução stalinista como continuidade do regime soviético, dirigido pelo Partido Bolchevique de Lênin e Trotsky, e identificar a ditadura stalinista com o comunismo, para desprestigiar este último.
A contrarrevolução stalinista
O livro de Broué desmente tudo isso. Mostra, apoiando-se em dados dos arquivos soviéticos, que não houve continuidade entre o Partido Bolchevique de Lênin e o Partido Comunista de Stalin; mas, sim, uma ruptura brutal provocada pela burocracia stalinista que exterminou a maioria da vanguarda revolucionária que dirigiu a Revolução de Outubro e lutou na Guerra Civil.
De acordo com os arquivos soviéticos, durante 1937 e 1938, a polícia secreta, chamada NKVD (sigla em russo para Comissariado do Povo para Assuntos Internos), deteve 1.548.366 pessoas, das quais 681.692 foram executadas. Mas, historiadores calculam que as execuções ultrapassaram 800 mil pessoas, a maioria delas, comunistas. Isso sem contar centenas de milhares que morreram de fome, frio e doenças nos campos de concentração na Sibéria ou que desapareceram sem deixar registros.
“Um rio de sangue”
Entre o partido dirigido por Lênin e o aparelho burocrático de Stalin há, na expressão usada por Trotsky, “um rio de sangue” derramado por essas centenas de milhares de revolucionários e revolucionárias assassinados. O stalinismo é o contrário do bolchevismo.
Mas, o livro de Broué vai muito além da denúncia. Mostra que, mesmo derrotados e confinados nos campos de concentração, mais de 30 mil trotskistas, segundo admitiu o próprio Stalin, continuaram resistindo e defendendo seu programa até o fim.
Broué mostra que Oposição de Esquerda tinha uma estratégia e um programa alternativos, em termos globais, ao stalinismo, baseados na experiência da Revolução de Outubro e que se apoiavam no marxismo e na confiança no proletariado mundial. Era um programa oposto pelo vértice ao programa da burocracia.
Esse programa partia da análise do processo de burocratização do Partido Comunista e do Estado soviético, provocado pela derrota das revoluções europeias e o consequente isolamento da União Soviética. Além disso, o país estava devastado pela Guerra Civil e pelas invasões imperialistas, assolado pela fome e atolado em seu atraso histórico.
Isso permitiu o surgimento de uma casta burocrática de funcionários que foi adquirindo privilégios diante da penúria do país. O stalinismo foi a expressão política dessa burocracia no Partido Comunista e no Estado.
Havia outro caminho
Mas, apesar das difíceis condições objetivas, a degeneração burocrática do Estado soviético poderia ter sido evitada. A compreensão do processo de degeneração, a estratégia e o programa para combatê-la foi o que possibilitou ao núcleo da Oposição de Esquerda resistir, apesar das capitulações dos vacilantes.
A Oposição de Esquerda defendia que o único futuro possível para a União Soviética era o desenvolvimento da revolução em escala mundial. Por isso, combateu duramente a falsa teoria do “socialismo em um só país”, que criou a falácia de que a Rússia, por suas peculiaridades (extensão territorial e riquezas nacionais), poderia alcançar o socialismo isoladamente.
A Oposição possuía uma moral revolucionária, uma disposição militante e uma convicção na revolução socialista mundial e no futuro do comunismo. Broué mostra que a Oposição não deixou de lutar em momento algum. Seus integrantes se organizaram na clandestinidade: primeiro nas fábricas e nos locais de trabalho e, depois, nos locais de deportação, nas prisões e nos campos de concentração.
Os militantes da Oposição divulgavam suas ideias de diferentes formas: panfletos e publicações clandestinas, que chegavam aos operários aos milhares e, depois, quando a repressão se intensificou, com publicações que circulavam de mão em mão.
O Boletim da Oposição, editado por Leon Sedov e por Trotsky, de 1929 a 1941, em Berlim e Paris, era introduzido na ex-URSS por marinheiros, funcionários do serviço diplomático, viajantes soviéticos em missões comerciais e científicas etc.
O extermínio da Oposição de Esquerda
Nas prisões e nos campos, os trotskistas lutaram contra os maus-tratos com o único meio de que dispunham: as greves de fome. Foram muitas, desde a greve do Centro de Isolamento de Tomsk, em 1927, passando pela prisão de Verkh-Neuralsk, em 1931 e em 1933, e terminando com as últimas greves de fome nos campos de prisioneiros de Vorkuta e Magadan, em 1936, quando foram fuzilados aos milhares.
Broué também descreve em cores vivas como os militantes trotskistas discutiam (nas prisões e nos campos) com diferentes posições, escreviam sobre os mais variados temas e, inclusive, produziam publicações clandestinas.
Em 2018, uma descoberta extraordinária ampliou as informações do livro de Broué. Durante uma reforma na prisão de Verkh-Neuralsk, foram descobertos, sob um piso de madeira da Cela 312, 30 cadernos com documentos e publicações da Oposição de Esquerda de 1932-33. As vozes dos trotskistas soviéticos voltaram a se fazer ouvir, 85 anos depois.
Um legado as futuras gerações
Esses verdadeiros bolcheviques-leninistas, como eles mesmos se chamavam, não escreviam só para manter a moral de suas fileiras. Esperavam que as futuras gerações resgatassem suas histórias e seus exemplos. Lutaram para preservar o marxismo revolucionário diante da monstruosa degeneração burocrática e para que sua luta inspirasse os futuros revolucionários e revolucionárias.
Trotsky impediu que o stalinismo cortasse o fio de continuidade do marxismo revolucionário ao fundar a Quarta Internacional, mesmo pagando com sua própria vida. Hoje, podemos dizer que os sacrifícios de Trotsky e da Oposição de Esquerda soviética não foram em vão. Procuramos transmitir às novas gerações os seus ensinamentos e honramos esses exemplos de vidas dedicadas à revolução socialista mundial. E proclamamos que nós, os trotskistas de hoje, reivindicamos ser os herdeiros e herdeiras orgulhosos dessa tradição.