A escalada de violência com características fascistas e o massacre de Pando, ambos organizados pela direita em setembro, tinham como objetivo impedir o referendo sobre a Nova Constituição. Esta ofensiva desencadeou, por outro lado, uma importante reação de camponeses e setores operários contra a direita, para fazer valer a proposta de Constituição aprovada pela Assembléia Constituinte em Oruro, após um ano e meio de trabalho.
Os trabalhadores reagiram com grandes marchas e um cerco a Santa Cruz. O governo optou por seguir a orientação da comunidade internacional (UNASUR, OEA e União Européia) e convidar aos prefeitos (governadores) que promoveram a violência para um diálogo em Cochabamba, enquanto pressionava os movimentos sociais a suspender o cerco a Santa Cruz.
Apesar das concessões aos prefeitos da Meia Lua – incorporando a autonomia departamental e uma parte dos Estatutos Autonômicos na Nova Constituição -, e do compromisso de devolver do excedente do IDH (imposto do gás) às regiões, Evo não conseguiu que os prefeitos assinem um acordo sobre o referendo Constitucional. Optou, assim, por aprovar a lei de convocação do referendo no Congresso Nacional.
As direções dos movimentos sociais que tinham suspendido o cerco a Santa Cruz, ao ver que o diálogo não resolveu nada, organizaram uma grande marcha nacional para pressionar o Congresso em La Paz.
A marcha que saiu de Caracollo, a 200km de La Paz, reuniu camponeses e indígenas de todos os departamentos. Também se fizeram presente milhares de mineiros cooperativistas, uma delegação de mineiros de Huanuni, vários setores operários e milhares de cocaleros. A caminhada durou sete dias e sensibilizou o país, crescendo na medida em que se aproximava de La Paz. O objetivo era claro: cercar o Congresso até que os parlamentares aprovassem a convocação ao referendo da Nova Constituição.
Na segunda-feira, dia 20 de outubro, quando o Congresso debateu o tema, uma marcha com mais de 50 mil pessoas chegava à capital. Durante todo o dia, camponeses e cocaleiros de todas as províncias do Departamento de La Paz continuavam chegando. A população apoiou a marcha. Donas de casa dividiam a água em solidariedade aos manifestantes. As escolas e instituições públicas não funcionaram em La Paz. A cidade parou para receber a marcha. Os manifestantes estavam decididos a ficar o tempo necessário e obrigar os parlamentares da direita a cederem.
O que não suspeitavam, porém, era que todo seu sacrifício terminaria numa negociata política do governo com a direita, transformando pontos substanciais do texto constitucional aprovado em Oruro.
MAS cedeu tudo a direita
Os trabalhadores e camponeses esperavam na praça do Congresso sob o estouro de dinamites dos mineiros. Já dentro do Congresso, os deputados do MAS, autorizados por Morales e liderados pelo vice-presidente, negociavam com os parlamentares do velho MNR, UM (partido de um empresário da indústria do cimento) e PODEMOS (que aglutina a maioria dos parlamentares da Meia lua).
Evo ficou na praça pedindo paciência aos manifestantes que ameaçavam invadir o Congresso. Por sua vez, os dirigentes das organizações sociais anunciavam que as negociações só mudariam os artigos sobre autonomias.
No dia seguinte, a marcha seguia em vigília até que finalmente anunciaram que o Congresso tinha aprovado a convocação do referendo constitucional para o 25 de janeiro de 2009. Evo, imediatamente, sancionou a lei e anunciou que nascia uma nova Bolívia com o grande pacto nacional. Os manifestantes voltavam a suas cidades e, horas depois, conheceu-se o conteúdo do acordo entre o MAS e a direita.
O que Evo Morales e a oposição celebraram, representou a maior concessão à direita por parte do MAS. Permitiu-se que uma comissão reduzida mudasse os artigos da Constituição aprovada em dezembro passado, segundo os interesses da direita. Isto é, Evo entregou a Constituição aprovada pela Assembléia Constituinte aos parlamentares da direita para que a mudassem conforme seus interesses. Cerca de 200 artigos, de um total de 411, foram alterados.
A nova Constituição saída do acordo não afeta os imensos latifúndios. Reconhece, protege e garante a propriedade privada dos latifundiários, das grandes cooperativas de Santa Cruz e das multinacionais.
Mudanças na Constituição não são de forma, mas de conteúdo
O governo, a maioria dos dirigentes sindicais que o seguem e, lamentavelmente, a direção da Central Operária Boliviana (COB) se apressaram em convencer as bases de que as mudanças são de forma e não de conteúdo. Mas isso é uma tentativa de enganar o povo: as mudanças são profundas e de conteúdo.
Román Loayza, um dos dirigentes do MAS e ex-Constituinte declarou: fomos traídos. O Comitê Político do Movimento Indígena Pachakuti (MIP) disse que era a pior capitulação de Evo Morales e, além disso, um deboche cruel ao povo mobilizado. Entre as mudanças mais importantes estão:
O limite de terras só servirá para as propriedades futuras (Artigo 399). Além disso, a nova Constituição reconhece direitos de prédios particulares localizados dentro de territórios indígenas (Artigo 394.I).
Os parlamentares da direita falam que agora esta Constituição é de todos os bolivianos, porque mantém os direitos da Meia Lua. Sem dúvida, ganharam os donos de terras e perderam os camponeses e indígenas na luta contra o latifúndio e pelo direito à terra. Considerando que este é o pano de fundo do conflito boliviano, estamos diante de uma concessão estratégica para a burguesia racista e oligárquica.
Além disso, apesar de ser um tema de concorrência do governo nacional, os recursos naturais poderão ser regulamentados e administrados em nível departamental, o que representa mais uma concessão à burguesia da Meia lua.
O governo fala de uma vitória histórica, já que aprovou a data do referendo e isolou um setor do CONALDE, o mais reacionário e de métodos fascistas.
A própria burguesia cruzenha reconhece que teve importantes avanços na Nova Constituição, mas vai fazer campanha pelo NÃO para não trair sua base de apoio.
O que o governo chama de vitória é uma rendição e um arma para a burguesia cruzenha utilizar mais adiante. O texto constitucional que sobrou dá oxigeno político à direita parlamentar e garante os interesses econômicos e políticos da direita da Meia lua.
Outra saída
Muitos camponeses, indígenas e operários que marcharam pensam que o pacto foi bom, pois conseguiu aprovar o referendo constitucional e porque Evo afirma que não havia outra saída. Mentira. O presidente indígena e irmão do povo, como é chamado, podia se apoiar na luta dos trabalhadores e do povo e dobrar ao Congresso, controlado pela direita. No entanto, Evo optou por seguir as regras das instituições do Estado Burguês, a democracia formal, o respeito ao âmbito parlamentar, demonstrando à OEA e UNASUR que é um democrata promotor do diálogo e acordos e não alguém que busca de conflitos. Preferiu aceitar as mudanças exigidas pela direita que se apoiar na luta do povo.
Mas outra saída é possível e necessária para derrotar a direita. A saída é a luta. O MAS e o governo estiveram na contramão desta opção.
Reverter o rumo da direção da COB
Como nunca antes, desde o início do governo de Evo, o Executivo da COB esteve defendendo e legitimando a política de conciliação de classe do presidente e de seu partido. Até felicitou o acordo com a direita. O canal 7 de televisão (do governo) divulgou: a COB ao lado de seu povo.
Mas recordemos que na greve operária que exigia uma nova lei de pensões e o fim das administradoras de fundos de pensão privados (AFPs), com saldo de dois mortos mineiros, o governo acusava o Executivo da COB de ter recebido dinheiro da Meia lua.
A direção da COB não pode capitular à conciliação do governo com a burguesia. Isso vai aplanar o caminho para a reação da ultradireita. A base mineira deve recusar esta política de seguir o governo Evo.
Os mineiros de Huanuni podem reverter o rumo da direção da COB, exigindo que sua direção explique em toda sua magnitude as verdadeiras mudanças na Constituição. Que tenha independência política e sindical frente ao governo que pactua com a direita, que exija do governo um plano de emergência para que os trabalhadores não paguem pela crise dos banqueiros e capitalistas.
Com a queda dos preços dos minerais, milhares de mineiros correm o risco de perder seus empregos. É necessário um plano que exija do governo nacionalizar as mineradoras privadas e cooperativistas para garantir os empregos.
Investimento imediato na Empresa Estatal de Huanuni para aumentar a produção e assim garantir os empregos! Nenhuma demissão! Nacionalização já! Escala móvel de salários para acompanhar a inflação!
Sem independência frente ao governo, a atual direção da COB não poderá impor este programa para defender os mineiros e demais trabalhadores.
Construir um Instrumento Político para derrotar à direita
A política de acordos e concessões só favorece à direita nos levará a um beco sem saída. Justificando sua capitulação, o oficialismo agora fala de transição a uma Bolívia possível. Mas a Bolívia possível e necessária para os operários, camponeses e indígenas é uma Bolívia sem latifúndio, sem as multinacionais que remetem seus ganhos para fora do país, enquanto o povo só recebe bonus assistencialistas.
O povo precisa mais para sobreviver, mas a ultradireita não permite. As necessidades populares requerem derrotar a Meia lua e, a cada vez, fica mais claro que o MAS não tem este objetivo.
É necessário construir um instrumento político, um verdadeiro partido de operários e camponeses revolucionários, uma nova direção que enfrente a burguesia. O grupo Luta Socialista põe-se à disposição dos operários e camponeses neste projeto.
Bolívia, 30 de outubro, 2008