Relançamento do “Festival de Besteiras que Assola o País (Febeapá)”, do jornalista Stanislaw Ponte Preta, é excelente oportunidade para relembrar o lado patético da ditadura e refletir o quanto autoritarismo e absurdos ainda estão na sociedade brasileira

A memória da ditadura estará sempre manchada por aquilo que teve de mais sombrio: perseguição e opressão generalizadas, tortura e assassinatos. Porém, no meio de tudo aquilo, surgiram valorosos exemplos de resistência. Como a criatividade persiste em aflorar mesmo nos momentos mais adversos, não faltam músicas, peças, filmes e livros que, pela metáfora ou pelo escracho, registram e denunciam os anos de “chumbo”.

Exemplos são os três volumes de Festival de Besteira que Assola o País (Febeapá), lançado pelo jornalista, radialista, teatrólogo e humorista Sérgio Porto, que entrou para a história através de seu “alter-ego” Stanislaw Ponte Preta, em textos publicados de 1966 até 1968. Neste ano, morreu de enfarte aos 45 anos, para muitos em decorrência de um café envenenado que lhe foi servido a mando do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) ou de qualquer outra “otoridade” atingida pela afiadíssima escrita de Stanislaw.

Em textos curtos e afiados, os causos, crônicas e histórias de Febeapá relatam as façanhas inacreditáveis de militares obtusos e autoritários, os desmandos de políticos toscos e o comportamento asqueroso dos chamados “cocorocas”, apelido criado para designar aqueles que, diante da ditadura (chamada sarcasticamente de “a redentora”), faziam do puxa-saquismo e do ufanismo a razão de suas medíocres vidas.

O escracho da ditadura
Como o próprio autor escreve na abertura do livro, “Pouco depois da ‘redentora’, cocorocas de diversas classes sociais e autoridades que geralmente se dizem ‘otoridades’, sentindo a oportunidade de aparecer, já a que a ‘redentora’, entre outras coisas, incentivou a política do dedurismo (…), iniciaram essa feia prática, advindo daí cada besteira que eu vou te contar”.

Segundo o jornalista, a idéia de escrever tais histórias surgiu muito antes de 1966, com a “besteira” de uma mãe paulista que, ao saber que seu filho tinha tirado zero numa prova de matemática, procurou as “otoridades” para denunciar o professor em questão como “perigoso agente comunista”.

Histórias como essas serviram como base para os livros e a criação de personagens como Garoto linha dura, Tia Zulmira (uma ex-cozinheira da Coluna Prestes), Primo Altamirando (um sujeito sem qualquer escrúpulo), Bonifácio Ponte Preta (um ultra-nacionalista) e Rosamundo, ainda em 1964.

Nos anos seguintes, a metralhadora giratória de Ponte Preta voltou-se para todos os lados: ministros, colunistas sociais (como Ibrahim Sued, de “O Globo”) e as muitas bizarrices que surgiam em um país onde o autoritarismo sempre fez questão de andar lado a lado com o absurdo.

Exemplos não faltavam. Em Mariana (MG), um delegado havia proibido casais de se sentarem juntos na única praça da cidade e, ainda, houve um deputado (Ernando Satiro) que vetou a apresentação da peça Um bonde chamado desejo (do norte-americano Tenesse Williams) porque no meio do espetáculo a atriz Maria Fernanda gritava “Viva a democracia”. O argumento do deputado: “Insulto eu não tolero!”. Algo tão absurdo quanto a prisão de um grupo sergipano de teatro amador sob a alegação de que “em Sergipe quem entende de teatro é a polícia”.

O sarcasmo como arma
Sérgio Porto esculpiu seu alter-ego a partir do personagem Serafim Ponte Grande, criado por Oswald de Andrade. Contudo, o que aproxima Stanislaw do universo do escritor modernista é muito mais do que um sobrenome. Assim como Oswald e seus companheiros da Semana de 1922 propuseram recriar a identidade brasileira através da “canibalização” da cultura estrangeira e das elites, mastigando-as, deglutindo-as e dando origem a algo completamente novo, cada crônica do Febeapá era recheada por observações que desnudavam e expunham o ridículo da ditadura em frases lapidares, como as que ilustram esta página.

Sintonizado com a crescente influência da TV na sociedade e sua promíscua relação com a ditadura, Ponte Preta também traçou um dos perfis mais críticos da televisão, alcunhada por ele como a “máquina de fazer doidos”.

Atualidade e contradições
Imperdível naquilo que tem de humor e crítica social, Febeapá não deixa, contudo, de ter seus “poréns”. Longe de estar livre de uma das características mais tristemente presentes no humor nacional – a utilização de estereótipos referentes aos setores mais marginalizados da sociedade –, partes do livro podem desagradar aqueles comprometidos com a luta contra a opressão.

Além de inúmeras tiradas com ranço machista, também coube a Ponte Preta a criação de termos como “bicharoca” para se referir a homossexuais (muitos assim apontados simplesmente por serem desafetos do jornalista) e, particularmente, de toda uma série protagonizada pelo “Crioulo Doido”.

Tendo surgido na música “Samba do Crioulo Doido”, célebre por ironizar as dificuldades dos compositores diante da obrigatoriedade de tratar somente de temas históricos nos sambas-enredos, o personagem, para Ponte Preta, era exemplar da capacidade dos setores mais empobrecidos de se apropriar do discurso dominante e subvertê-lo através do riso e das incongruências. Algo que, contudo, não impediu que o termo também se tranformasse, com o tempo, em estereótipo de negros e negras.

“Poréns” à parte, o fato é que Febeapá é leitura obrigatória (e gratificante) não só pelo mergulho que ele nos permite nos bastidores da ditadura, mas também pela reflexão que o livro nos possibilita sobre o quanto de tudo aquilo ainda permanece vivo na sociedade brasileira. Seja na hipocrisia do discurso lulista, na preservação dos velhos métodos da oligarquia ou no constante ressurgimento de “otoridades” dos mais diferentes naipes.

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