Bernardo Cerdeira, de São Paulo (SP)
Trágico. Brutal. Comovedor. Inspirador. Todos esses adjetivos, e muitos mais, se aplicam ao livro “Comunistas contra Stálin. Massacre de uma geração” que a Editora Sundermann publica pela primeira vez em língua portuguesa.
Em suas páginas, o historiador francês Pierre Broué conta uma história ignorada ou minimizada até agora pelos historiadores, mesmo aqueles que se reivindicam marxistas: a resistência heróica dos comunistas, especialmente os da Oposição de Esquerda trotskysta, contra a ditadura stalinista,
Broué diz que é “uma história que foi zelosamente ocultada durante mais de meio século”. Hoje, 18 anos depois do lançamento desse livro em francês (2003), essa operação de ocultamento do massacre de centenas de milhares de comunistas de oposição que se deu na década de 30, continua e já dura mais de 8 décadas.
Mas, quem se ocupou com tanto zelo dessa operação de ocultamento? É claro que, acima de todos, o stalinismo, que sempre teve todo o interesse em ocultar a resistência e o massacre, não só para encobrir seus crimes, mas principalmente para encobrir a força da Oposição de Esquerda, que só desapareceu quando Stálin matou todos os seus militantes.
Ao calar as vozes da Oposição e ocultar o massacre, Stálin procurava realizar um aspecto essencial da sua tarefa contrarrevolucionária que consistia em apresentar-se ao proletariado de todo o mundo como o herdeiro das tradições da Revolução de Outubro e único representante do comunismo e assim, defender mais facilmente os privilégios da casta burocrática.
Mas, o stalinismo não era o único interessado nessa operação de ocultamento. O imperialismo e seus ideólogos também sempre tiveram um interesse especial em ocultar essa história. Assim, esperavam poder apresentar a contrarrevolução burocrática stalinista como continuidade do regime soviético dirigido pelo Partido Bolchevique de Lênin e Trotsky e, ao mesmo tempo, assinalar a repugnante ditadura stalinista como se fosse o verdadeiro comunismo.
Esses inimigos da revolução acusaram o Partido Bolchevique, a Revolução Russa e o socialismo de serem os responsáveis pelos crimes e as mazelas das ditaduras burocráticas do stalinismo, para assim desprestigiar mais facilmente o socialismo diante dos trabalhadores e povos do mundo inteiro.
O livro de Broué desmente tudo isso. Mostra com números, apoiando-se em dados dos arquivos soviéticos e em especialistas como o professor Vadim Rogovin, que não houve continuidade entre o Partido Bolchevique de Lênin e o Partido Comunista de Stálin, mas sim uma ruptura brutal provocada pela burocracia stalinista que exterminou a maioria da vanguarda revolucionária que dirigiu a Revolução de Outubro e lutou a guerra civil.
De acordo com os arquivos soviéticos, durante 1937 e 1938, a polícia secreta (chamada NKVD) deteve 1.548.366 pessoas, das quais 681.692 foram executadas. Mas historiadores calculam que mais de 800 mil pessoas foram oficialmente executadas, a maioria comunistas. Isso sem contar centenas de milhares que morreram de fome, frio e doenças nos campos de concentração na Sibéria, chamados de gulags, e que desapareceram sem registro.
Entre o partido dirigido Lênin e o aparelho burocrático de Stálin há, na expressão usada por Trotsky, “um rio de sangue” derramado por essas centenas de milhares de revolucionários assassinados. O stalinismo é o contrário do bolchevismo.
Mas, o livro de Broué vai muito além da denúncia. Mostra que mesmo derrotados e confinados nos campos de concentração da Sibéria, mais de 30 mil trotskistas, segundo admitiu o próprio Stalin, continuaram resistindo e defendendo seu programa até o fim. Como puderam suportar essas terríveis provações e manter seus princípios?
Broué mostra que Oposição de Esquerda tinha uma estratégia e um programa alternativo global ao stalinismo, baseado na experiência da Revolução de Outubro e que se apoiava no marxismo e na confiança no proletariado mundial. Era um programa oposto pelo vértice ao programa da burocracia.
Esse programa partia da análise do processo de burocratização do Partido Comunista e do Estado soviético, provocado pela derrota das revoluções europeias e pelo retrocesso da onda revolucionária mundial, com o consequente isolamento da União Soviética. Além disso, o país estava devastado pela Guerra civil e pelas invasões imperialistas, assolado pela fome e atolado em seu atraso histórico.
Esses elementos combinados com o florescimento de uma classe proprietária, produto das concessões capitalistas da Nova Política Econômica, permitiram a surgimento de uma casta burocrática de funcionários que foi adquirindo privilégios diante da penúria do país. O stalinismo foi a expressão política dessa burocracia no Partido Comunista e no Estado.
Mas, apesar das difíceis condições objetivas de isolamento e penúria do país, a degeneração burocrática do Estado soviético poderia ter sido evitada. A compreensão do processo de degeneração burocrática e a estratégia e o programa para combate-la foi o que possibilitou ao núcleo da Oposição de Esquerda resistir, apesar das capitulações dos vacilantes. Mas, em que consistiam os eixos desse programa?
A Oposição de Esquerda defendia que o único futuro possível para a União Soviética era o desenvolvimento da Revolução Mundial. Por isso, combateu duramente a falsa teoria do “Socialismo em um só país” que criou a falácia de que a Rússia por suas peculiaridades (extensão territorial e riquezas nacionais) podia alcançar o socialismo isoladamente.
A pretensa “teoria” do Socialismo em um só país também defendia que era possível a “neutralização” da burguesia mundial” e conduziu, mais tarde, à política da “coexistência pacífica” com o imperialismo, ao Pacto Stálin-Hitler e aos acordos contrarrevolucionários de Yalta e Potsdam que cristalizaram áreas de influência dos EUA e da URSS.
Trotsky e a Oposição de Esquerda também se opuseram à política da revolução por etapas e o apoio político à burguesia nacional que a Internacional Comunista stalinizada aplicou na Revolução chinesa de 1927. Trotsky chamou essa política de apoio ao partido burguês Kuomintang de uma “caricatura do menchevismo”. Essa orientação levou à derrota de Revolução na China e ao massacre do proletariado chinês, provocando um isolamento ainda maior da URSS.
A revolução por etapas depois foi elevada pelo stalinismo à categoria de estratégia mundial de aliança com a burguesia, plasmada na política da Frente Popular para todo o mundo baseada na “teoria dos campos” e a colaboração de classes com o campo burguês “progressista”.
A teoria da Revolução Permanente em todo o mundo, incluindo a revolução política na União Soviética que expulsasse a burocracia, era e é a única teoria que se opõe a ideologia do “Socialismo em um só país” e constitui, ao mesmo tempo, uma estratégia e um programa coerente que poderiam impedir a degeneração do Estado Soviético.
Desde que foi lançada a Plataforma dos 46, a primeira manifestação pública da Oposição de Esquerda em 1923, o programa da Oposição defendeu uma política de industrialização da URSS que abastecesse os camponeses com bens de consumo. Defendia também que o Estado soviético enfrentasse e limitasse o poder dos camponeses ricos, os chamados “kulaks”, com impostos para impedir que esses se fortalecessem como classe exploradora.
Mas, a Oposição de Esquerda não defendia à coletivização forçada do campo, adotada pela burocracia soviética anos depois, em 1929. Quando isso ocorreu, a Oposição denunciou que a burocracia fora levada a essa decisão porque os “kulaks”, fortalecidos por anos de concessões, começaram a boicotar o abastecimento das cidades.
A opção pela coletivização forçada, foi uma reação burocrática desesperada que provocou milhões de mortos e fome generalizada. A Oposição de Esquerda, defendia, desde o princípio, uma política de coletivização gradativa e cuidadosa com os camponeses, incluindo os kulaks e os camponeses pequenos e médios
Mas, o ponto mais importante do programa da Oposição era o retorno da plena democracia no partido, na Internacional e nos Sovietes que levasse a um debate aberto das alternativas para a URSS e provocasse a regeneração do partido e da Internacional, permitindo encontrar uma linha correta para a revolução Internacional.
A Oposição de Esquerda reuniu a maior parte dos melhores quadros que haviam dirigido a Revolução de Outubro e lutado na guerra civil. Tinha grande peso no partido, principalmente entre a classe operária. Quando se uniu a outras facções, como a fração de Zinoviev e Kamenev, na Oposição Unida agrupou praticamente todas as alas críticas à burocracia.
No entanto, o retrocesso da revolução mundial, especialmente da Alemanha, e o cansaço das massas, depois de oito anos de guerras e lutas, permitiram que a forte repressão do aparato burocrático triunfasse, usando todo tipo de métodos: fraudes, calúnias, perseguições, agressões policiais, expulsões do partido, prisões dos oposicionistas, deportações à Sibéria de todos os seus dirigentes e principais quadros, torturas e finalmente execuções.
Trotsky dizia, na década de 30, que “a luta contra a feroz repressão sobre a oposição marxista na URSS é inseparável da luta para a libertação da vanguarda proletária mundial da influência exercida pelos agentes stalinistas e os métodos stalinistas”.
Broué cita uma passagem do livro O grande jogo de Leopold Trepper, um ex stalinista, chefe da extraordinária equipe de espionagem soviética que atuava na Alemanha nazista, a chamada Orquestra Vermelha, para atestar a luta dos trotskistas e para mostrar como o seu programa alternativo ao stalinismo foi a base de sua resistência. Em tom autocrítico, Trepper escreve o seguinte:
“A revolução havia degenerado num sistema de terror e de horror; os ideais do socialismo estavam ridicularizados por um dogma fossilizado que os verdugos tinham a desfaçatez de chamar de marxismo. Todos os que não se sublevaram contra a máquina stalinista são responsáveis por isso, coletivamente responsáveis. Não faço exceções e não escapo deste veredito.
Mas, quem protestou? Quem elevou sua voz contra o ultraje? Os trotskistas puderam reivindicar essa honra (…) Nos tempos dos grandes expurgos, só podiam clamar sua rebelião nos vastos desertos gelados para onde haviam sido enviados para serem exterminados. Nos campos sua conduta foi admirável, mas suas vozes se perderam na tundra.
Hoje os trotskistas têm o direito de acusar os que então uivavam com os lobos. Que não esqueçam, porém, que possuíam sobre nós a imensa vantagem de dispor de um sistema político coerente, suscetível para derrubar o stalinismo, e ao qual podiam agarrar-se no meio da profunda miséria da revolução traída. ”
Essa bela homenagem é verdadeira. Mas, a coerência de uma alternativa política, teórica, programática e de ação, ainda que tenha sido, sem dúvida, fundamental, não explica tudo. Por que os militantes trotskistas resistiram até o fim sem capitular, mesmo sofrendo terríveis privações e torturas nos “desertos gelados” da Sibéria e sabendo que seu destino quase certo era o extermínio?
Havia também uma moral revolucionária, uma disposição militante e uma convicção na revolução socialista mundial e no futuro do comunismo que tinha sua base na experiência da Revolução de Outubro.
Broué mostra, com exemplos vivos como a Oposição não deixou de lutar nunca. Seus integrantes se organizaram na clandestinidade: primeiro nas fábricas e nos locais de trabalho e, depois, nos locais de deportação, nas prisões e nos campos de concentração.
Podemos acompanhar em “Comunistas contra Stalin” as diferentes formas com que os militantes da Oposição divulgavam suas ideias. Com panfletos e publicações clandestinas, mas que chegavam aos operários aos milhares e depois, quando a repressão se intensificou, com publicações que circulavam de mão em mão.
O Boletim da Oposição, editado por Leon Sedov e por Trotsky, foi publicado de 1929 até 1941 em Berlin, Paris e outras cidades e introduzido na URSS por marinheiros, funcionários do serviço diplomático, viajantes soviéticos em missões comerciais e científica, etc. Foram publicados um total de 65 números.
Nas prisões e nos campos, os trotskistas lutaram organizadamente contra os maus-tratos com o único meio de que dispunham: as greves de fome de centenas de prisioneiros. Foram muitas, desde a greve do centro de isolamento de Tomsk, em 1927, passando pelas greves na prisão de Verkh-Neuralsk, em 1931 e em 1933 e terminando com as últimas greves de fome nos campos de prisioneiros de Vorkuta e Magadan em 1937-39, onde foram fuzilados milhares de militantes trotskistas. Comitês de greve eleitos e reconhecidos por todos, organizavam as reivindicações, escreviam os manifestos políticos e cartas dos grevistas ao governo e conduziam essas lutas.
Broué também descreve em cores vivas como os militantes trotskistas discutiam nas prisões e dos campos, com diferentes posições, escreviam sobre os mais variados temas e inclusive produziam publicações clandestinas dentro das prisões e dos campos. Um pequeno exemplo, cita Broué, é uma modesta revista chamada “Recopilações sobre o período atual”.
Em 2018, uma descoberta extraordinária ampliou as informações do livro de Broué. Durante uma reforma na prisão de Verkh-Neuralsk, foram descobertos sob um piso de madeira da Cela 312, 30 cadernos com documentos e publicações da Oposição de Esquerda de 1932-33. A voz dos trotskistas soviéticos voltou a se fazer ouvir 85 anos depois.
Esses verdadeiros bolcheviques-leninistas, como eles mesmos se chamavam, não escreviam só para manter a moral de suas fileiras. Esperavam que as futuras gerações resgatassem sua história e seu exemplo. Lutaram para preservar o marxismo revolucionário diante da monstruosa degeneração burocrática e para que sua luta inspirasse futuras gerações de revolucionários.
Trotsky impediu que o stalinismo cortasse o fio de continuidade do marxismo revolucionário ao fundar a IV Internacional, mesmo pagando com sua vida. Hoje podemos dizer que os sacrifícios de Trotsky e da Oposição de Esquerda soviética não foram em vão. Procuramos transmitir às novas gerações os seus ensinamentos e honramos esses exemplos de vidas dedicadas à revolução socialista mundial. E proclamamos que nós, os trotskistas de hoje, somos os herdeiros orgulhosos dessa tradição.