Em 2 de abril de 1968, há exatos 50 anos, entrava em cartaz 2001: Uma Odisséia no Espaço, um dos maiores e mais influentes filmes da história do cinema mundial. Um ano antes do homem pisar na lua, o filme de ficção científica foi um marco do gênero e influenciou toda a atual geração de diretores como Steven Spielberg, Ridley Scott, Martin Scorsese e George Luccas, criador do épico Star Wars.
O filme é fruto de uma parceria entre o diretor Stanley Kubrick e o escritor Arthur C. Clarke, que escreveram juntos o roteiro e o livro. Também foi usado como referencia o conto A Sentinela, que Clarke havia escrito em 1951. A ideia inicial era de que a obra fosse assinada conjuntamente, mas por algum motivo Clarke ficou com o livro e Kubrick com o filme.
Hoje, já consagrado como um clássico, o filme nem sempre foi aceito pela crítica. Logo após seu lançamento, a revista New Yorker o classificou como “um trabalho inesquecível”. A também tradicional Time, disse se tratar de um “épico brilhantemente dirigido”. Já o New York Time colocou o filme entre o “hipnótico e o imensamente chato”. As críticas foram tão duras que poucos dias depois do lançamento uma segunda versão foi lançada com 19 minutos a menos do que a original.
Mas toda polêmica é pouca para 2001. E não é para menos. O filme não só é um marco cinematográfico, artístico e técnico no que diz respeito aos efeitos especiais, à montagem e à trilha sonora. É também um marco na discussão científica, sociológica, antropológica e filosófica no cinema. Uma verdadeira obra-prima, autoral, de potencial simbólico gigantesco. Isso explica porque 50 anos depois o filme ainda é motivo de discussão.
Certa vez Clarke declarou em uma entrevista que “se alguém entender 2001 de primeira, nós teremos falhado. Quisemos levantar muito mais questões do que respondê-las”. Na mesma linha, o diretor Kubrick declarou o seguinte: “Eu tentei criar uma experiência visual, que se desviasse do campo das palavras e penetrasse diretamente no subconsciente com um teor emocional e filosófico… Projetei o filme para ser uma experiência subjetiva intensa, que atinja o espectador num nível profundo de consciência, exatamente como a música faz… Você está livre para especular como quiser sobre o sentido filosófico e alegórico do filme”.
Ou seja, trata-se de um filme para ver e rever…
Um marco cinematográfico
O primeiro grande mérito do filme é a sua realização em si. Em uma época em que não haviam computadores para efeitos especiais, as viagens espaciais precisavam ser feitas com muita criatividade. Todas as espaçonaves eram simuladas com maquetes feitas à mão e muitas vezes foi preciso fazer múltipla exposição do negativo, ou seja, gravar cenas em cima de cenas. Outras, como a do astronauta Frank Poole correndo na espaçonave, são verdadeiras obras de engenharia. Muito dos movimentos de câmera, enquadramentos e cenas usadas em 2001 acabaram virando verdadeiras referências para os filmes de ficção científica.
Aliás, dos quatro Oscars a que foi indicado, o filme levou apenas um – o de melhores efeitos especiais, dirigidos por Douglas Trumbull, O filme também concorreu a melhor direção de arte, melhor roteiro adaptado e melhor diretor.
Outro ponto-alto da produção, sem dúvidas, são os efeitos sonoros e a trilha musical. A primeira vista pode parecer monótono, a final, em dois terços do filme não há sequer diálogo. E nas poucas falas que há, pouca coisa importante é revelada. Além disso, fiel aos fatos científicos, não há efeitos sonoros no espaço, já que o som não se propaga no vácuo.
A trilha sonora do filme seria feita por Alex North, que já havia trabalhado com Kubrick em Spartacus. Mas na última hora Kubrick optou por usar músicas clássicas, esquecendo, inclusive, de avisar o próprio North. Há boatos também de que Kubrick havia cogitado a banda Pink Floyd para fazer a trilha sonora, mas que por algum motivo recusaram o convite. O fato é que o filme acabou saindo com Assim falava Zaratustra, de Richard Strauss, Danúbio Azul, de Johann Strauss e o perturbador Requiem, de György Ligeti. Obras sem as quais é impossível imaginar o filme hoje.
Aurora do homem: a transformação do macaco pelo trabalho
Indo na contramão da ficção científica, 2001 começa falando do passado. O filme começa mostrando, há milhares de anos, dois grupos de macacos primitivos lutando pela sobrevivência no deserto africano. Há uma briga entre os macacos pelo controle de uma pequena fonte d’água onde – literalmente – vence o grupo que grita mais alto.
Após a derrota, o grupo de macacos derrotados entra em contato com um misterioso monolito negro sobre o qual se alinham a Terra, a Lua e o Sol. Em meio a histeria e pavor, os macacos decidem tocar o monolito. Em um momento posterior, enquanto manuseia um osso e se lembra do estranho monolito, um dos macacos descobre o poder do osso como ferramenta. É a tomada de consciência. Uma sucessão de imagens mostram as conquistas da descoberta, como a possibilidade de abater animais, se alimentar de carne e, inclusive, derrotar com as armas o grupo rival de macacos que controla a água.
Em um confronto com o grupo rival, os macacos usando ossos como ferramenta matam o rival com toques de sadismo. Estão abertas as vias para o macaco se transformar em homem e dominar a terra. Em um ímpeto de poder, o macaco líder lança seu osso para cima e enquanto o objeto voa, vemos se transformar em uma espaço nave. A cena épica é o maior corte temporal da história do cinema e também é uma das mais cínicas. Afinal, é como se milhares de anos da história da humanidade fossem reduzidas ao homem matando o homem da disputa pelo poder, para garantir o controle dos recursos e da produção. Ou como disse Marx no Manifesto Comunista, “a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história da luta de classe”…
Estação espacial, Lua e Missão Júpiter: as forças produtivas contra o homem
Se na primeira parte vemos o surgimento do homem e o domínio do meio, o que vemos aqui é justamente o inverso. Em oposição aos macacos estridentes e barulhentos, temos astronautas e cientistas pouco humanos, quase sem expressão. Uma coisa no entanto não muda: a disputa pelo poder. Representantes de diversos países sentados ao redor de uma mesa, cada qual com seu copo d’água, tal como os macacos ao redor da poça, disputam “diplomaticamente” uma descoberta na lua. Trata-se justamente o estranho monolito, o mesmo dos macacos. Em uma reação instintiva, os astronautas espantados com o monolito repetem a atitude dos macacos, e o tocam. Há algo em comum entre o macaco primitivo e o homem que viaja no espaço.
A cena da caneta flutuando, análoga à cena do osso jogado pelo primata, nos lembra que “a caneta é mais forte do que a espada”, mas ainda assim é uma disputa pelo poder. Seja com ossos nas mãos, seja com diplomacia. Vale lembrar que o filme foi lançado em meio à Guerra Fria.
Segue a isso, dezoito meses depois, uma expedição pelo espaço em busca de um sinal emitido pelo estranho monolito. Dois astronautas, o supercomputador HAL 9000 e mais alguns astronautas congelados compõem a tripulação da Discovery 1 em direção à Júpiter.
Não há clareza sobre os objetivos da missão. Fato é que os astronautas começam a desconfiar de que HAL 9000 pode ter cometido uma falha. HAL, prepotente em sua infalibilidade, acusa que a falha é humana. Astronautas frios e apáticos de um lado, do outro um computador vaidoso, impetuoso e vingativo.
Começa então novamente uma disputa pelo poder dentro da expedição. Dessa vez, do homem contra a máquina. HAL, que tem o controle sobre a nave, começa a eliminar os tripulantes. Primeiro desligando os que estão congelados, depois impedindo um deles de retornar para dentro da espaçonave.
O homem-macaco que no início do filme passou a dominar as ferramentas se viu no futuro dominado e ameaçado pelas próprias ferramentas.Seria o desenvolvimento tecnológico uma ameaça ao próprio desenvolvimento da humanidade? Estaria o desenvolvimento das forças produtivas nos alienando inclusive de nossa humanidade? Dave, o sobrevivente, é quem derrota HAL com uma simples chave de fenda. Uma simples ferramenta usada como arma. O computador ainda agoniza, diz estar com medo e pede pela sua vida. Afinal, o que é a vida?
Pós-Júpiter: ontologia e superação
Após derrotar HAL, Dave segue em uma estranha viagem. O formato fálico da Discovery 1, a cápsula em que Dave é ejetado e o formato da fenda vertical em que ele entra renderam grandes debates sobre o aspecto sexual das imagens, sugerindo o momento da fecundação. Em meio à uns bons minutos de pura psicodelia, formas geométricas brilhantes e luminosas, formas orgânicas são projetadas, o que reforça essas teses.
Após essa estranha viagem, Dave acorda em um futurista ambiente renascentista. A câmera alterna entre o ponto de vista do espectador e do astronauta. Dave passa a ver a si mesmo, cada vez mais velho.
Em um dado momento, Dave envelhecido derruba uma taça de vinho. Como o macaco que contemplava os ossos antes do lampejo de consciência, Dave contempla a taça quebrada. Seria uma nova tomada de consciência? Ou apenas uma alegoria para a morte e a ontologia humana: a taça quebrada deixa de ser taça, mas o vinho derramado continua sendo vinho. Será que o macaco primitivo ainda existe dentro de nós e ainda temos que superar muita coisa? O indivíduo morre, mas a humanidade fica. Será que existe uma ontologia humana, uma essência do que seja a humanidade? São perguntas que o filme abre, mas não responde.
Nasce o menino estrela
No leito de morte, Dave se depara em seus momentos finais com o estranho monolito dentro do quarto. Tal como o macaco e o astronauta, Dave estende a mão. Talvez uma referência à A criação de Adão, de Michelângelo.
A essa altura, já podemos entender o monolito com aquilo indecifrável e impenetrável que está por trás da origem do homem. Como chegamos até aqui? Mergulhado na escuridão do monolito, o espectador vê nascer a “criança estrelar”(starchild) que contempla do espaço o planeta terra. Da colonização do cosmo – ou de sua fecundação (segundo a interpretação sexual da viagem de Dave) nascerá o novo homem, um homem consciente do universo em que habita.
Interpretações sem fim
Obviamente, essas são apenas algumas das interpretações e possíveis questões levantadas por 2001 Uma Odisséia no Espaço. São apenas pistas. Surgiram interpretações para todos os gostos. Desde aqueles que acreditam ser o monolito uma espécie de pedra filosofal, passando por aqueles que acreditam que a humanidade é guiada por seres evoluídos de fora da Terra, até aqueles que como nós entende a cena do macaco como uma alegoria para a origem materialista do homem, da transformação do macaco em homem pelo trabalho, e do desenvolvimento das forças produtivas.
Todos tem uma interpretação para 2001. E se hoje, 50 anos depois, ainda temos muito o que discutir, só podemos tirara disso uma certeza em comum: trata-se de uma verdadeira obra prima. Todo o resto, continua em aberto para discussão. Como disse Kubrick certa vez: “Como poderíamos apreciar a Mona Lisa se Leonardo da Vinci tivesse escrito embaixo do quadro: ‘A mulher está sorrindo porque ela esconde um segredo do seu amado’. Isso iria acorrentar o espectador à realidade, e eu não quero que isso aconteça com 2001”.
Fica aqui o legado filosófico e cinematográfico de 2001 Uma Odisséia no Espaço.